São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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Uma paródia mal-humorada

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Polígono das Secas", de Diogo Mainardi, é uma paródia da literatura regionalista, uma pretensiosa e assoberbada tentativa de destituir a importância de escritores como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos -e, de quebra, de toda literatura que tenha preocupações de ordem social ou política.
Mainardi cria personagens que considera típicas da prosa regionalista, representando sua errância pelos sertões com as cores do grotesco e da escatologia.
São assim, por exemplo, o vaqueiro Cristino Castro (que é obrigado a dar sempre três quartos de seus bens a um latifundiário, o senador Pompeu, e que por isso tem três de seus membros decepados por um jagunço quando o senador perde uma das pernas), ou o retirante Demerval Lobão, que vai perdendo seus nove filhos sob o sol causticante da caatinga.
A via-crúcis de cada uma das personagens de Mainardi se encerra, de maneira derrisória, nos assassinatos cometidos por uma figura sinistra, o "untor" -espécie de "serial killer" do sertão, que espalha pelas cidades em que passa um unguento letal e tem como objetivo matar todas as mulheres chamadas Catarina Rosa existentes no polígono das secas.
Por mais esquisita que seja essa trama, o autor nos informa que o untor é uma referência a um episódio histórico: durante uma epidemia na Milão de 1630, uma mulher chamada Caterina Rosa teria acusado um comissário de saúde que ungia um muro de, sob influxos diabólicos, disseminar o bacilo da peste -levando a Justiça italiana a condená-lo à morte.
A alegoria está montada: assim como o "untor" milanês fora vítima da estupidez da Justiça italiana, ludibriada pelas crendices de uma mulher do povo, o "untor" de Mainardi está destinado a vingar seu predecessor, simbolizando a vitória do universo ideal da alta cultura sobre o imaginário popular (encarnado pelas Catarina Rosa nordestinas e pelos sertanejos que sucumbem a seu veneno).
"Polígono das Secas" tem como alvo predileto, portanto, toda literatura que procure dar dimensão universal e mítica à condição social do nordestino.
O narrador do livro -que mantém um rígido distanciamento em relação ao mundo sertanejo- ataca autores como Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto e José Lins do Rego por terem criado obras permeadas de ingênuos pruridos morais.
Com isso, Mainardi pretende fazer a defesa de uma literatura desprovida de utopias, mas não esconde também seu desejo de chocar nossa má consciência social:
"A literatura regionalista glorifica a figura do sertanejo, apropriando-se de sua linguagem e de suas idéias, acolhendo no universo intelectual o cretinismo endêmico de sua cultura. (...) O obscurantismo sertanejo contamina a literatura regionalista assim como o obscurantismo de Caterina Rosa contamina a justiça milanesa", escreve Mainardi.
Obviamente, ideais políticos bem intencionados nunca foram garantia de grande literatura. Mas preconceito e ressentimento não significam, por si só, qualidade artística.
Se um escritor como Céline, por exemplo, revolucionou a prosa francesa desse século, não foi devido ao seu anti-semitismo -mas apesar dele. Citar Céline para mostrar as deficiências de Mainardi, porém, é um exagero.
O fato é que ele não entendeu que o termo "regionalismo" tem valor meramente heurístico, assim como qualquer outro recorte classificatório.
O teor arcaizante da prosa de um Guimarães Rosa só é possível tendo como horizonte de representação o universo embrutecido do sertão. Mas é no arcaísmo dessa linguagem que está a essência literária -e portanto universal- de Guimarães Rosa, e não apenas nos dramas sertanejos.
"Polígono das Secas" mostra, portanto, que Diogo Mainardi é sobretudo um mau leitor: ele não entende que a literatura se efetiva nas tensões entre aquilo que é apresentado e a forma como se dá a representação.
Daí as paródias do que chama apressadamente de regionalismo terem um estilo tão uniforme e monótono, sendo mera transposição de temas sertanejos para uma prosa sem nenhum trabalho estilístico.
Mainardi diz explicitamente, aliás, que "a literatura regionalista não tem mais do que um punhado de temas", o que para ele significa a recorrência de estereótipos do jagunço, do cangaceiro ou do retirante.
Sua própria literatura tem, assim, um sentido esquemático: as tramas só existem para corroborar uma tese, e as personagens, por sua inconsistência, têm que ser "explicadas" em cansativos capítulos "metalinguísticos".
Tudo isso seria suportável se "Polígono das Secas" tivesse um mínimo de humor por trás de suas deficiências intelectuais e literárias.
Infelizmente, porém, é apenas um panfleto presunçoso, que proclama em tom peremptório que "a verdadeira literatura demonstra que o sertanejo não sabe nada, não muda nada, não aprende anda, não entende nada, não vale nada", ou que "a única função da literatura é destruir as convicções do homem", entre outras platitudes.
Diogo Mainardi assume assim ares de renovador da linguagem literária ("a sua missão" -diz o narrador- "já não é destruir a literatura regionalista, mas toda a literatura deste século"), embora não passe, com seu estilo rabugento e sentencioso, de um êmulo de Paulo Francis.

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