São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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O corpo a corpo no espaço

RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há dez anos ocorreram dois importantes acontecimentos na história aeroespacial: o mais grave acidente da conquista espacial -a explosão da Challenger, em 28 de janeiro- e o lançamento da primeira estação espacial permanente soviética (hoje russa) Mir, em 19 de fevereiro.
Os dois eventos, apesar de aparentemente dissociados, servem como marcos para medir o nível de desenvolvimento da tecnologia espacial na Rússia e nos EUA.
Enquanto os russos se vangloriavam de estar colocando a terceira geração de estações orbitais -Mir-, com a qual iriam manter os seus recordes de permanência no espaço, obtidos com as estações Salyut, os EUA amargavam a triste perda de uma de suas quatro naves recuperáveis.
Mais que lamentável, era trágica a situação dos EUA: haviam projetado as naves recuperáveis como primeira fase para a construção da estação orbital Freedom.
Depois de seis anos, durante os quais nada se fez para que a estação orbital se transformasse em realidade, assistia-se à explosão de um dos componentes dessa frota sem que dois dos seus principais objetivos fossem atingidos: o domínio do mercado de lançamentos de satélites e a instalação de uma estação orbital dos EUA.
Além do emprego pouco flexível, as naves recuperáveis americanas se mostraram muito lentas para ser ativadas com rapidez necessária nas manobras militares e mesmo em missões de segurança, quando era preciso lançar, com urgência, satélites de reconhecimento e espionagem. Em consequência, o contrato com o Ministério de Defesa dos EUA foi recentemente cancelado, pois os foguetes convencionais se mostravam mais ágeis e de uso mais seguro.
Os russos, que partiram no sentido inverso, instalando primeiro suas estações com foguetes convencionais, antes de desenvolver sua nave recuperável Buran, tiveram mais sucesso.
Tão grande foi o seu êxito que, depois da missão TM-11, em 1990, a Mir se transformou em uma importante fonte de renda para o programa espacial russo, assim como um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento da estação espacial internacional. Os russos irão fornecer o bloco central oriundo da Mir-2 para a construção da estação orbital internacional Alpha.
Não devemos esquecer que, desde 12 de junho de 1994, os astronautas dos EUA, com suas naves recuperáveis acopladas à Mir, vêm realizando trabalho conjunto com os russos que visam transferência de tecnologia para construir a nova estação orbital.
Convém assinalar que um dos aspectos pouco conhecidos da Mir, bem como de sua predecessora Salyut, foi o desenvolvimento das naves cargueiras Progress, destinadas ao reabastecimento.
No momento em que se comemoram os dez anos desses fatos, é conveniente relembrar as características, objetivos e importância de cada um desses programas.
Não é nova a idéia de um sistema de transporte espacial completamente reutilizável, uma espécie de avião-foguete tripulável que permitisse a viagem de ida e volta às estações espaciais, experiências em órbita ao redor da Terra, a colocação de satélites artificiais em órbita e, depois de executar essas tarefas, retornasse à superfície.
Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1943, o engenheiro alemão Eugene Sanger (1905-64) já havia imaginado um veículo que fosse ao espaço como um foguete e voltasse em seguida, aterrissando como um avião num aeroporto.
A meta de Sanger era a construção de um bombardeiro antipodal (capaz de atingir pontos antípodos na superfície da Terra), que retornasse à origem, depois de uma volta ao redor do globo.
O bombardeiro, com 25 m de comprimento e 100 toneladas na partida, deveria decolar horizontalmente, atingir velocidade de 22 mil km/h, altitude de 250 km e, depois de largar uma bomba de uma tonelada, retornar após dar a volta em torno do planeta.
Inexequível tecnologicamente na época, constituiu em 1972 um grande desafio para a Nasa. Como projetar um avião-foguete, com motores, reservatórios, cabine de comando, depósito de carga útil e estrutura que fosse capaz de atingir a velocidade de satelitização?
O objetivo da Nasa era construir uma nave totalmente recuperável. Os foguetes lançadores de satélites e sondas espaciais até então utilizados só eram usados uma vez: em minutos, seus sofisticados motores, sistemas de orientação e estrutura ultraleve, que haviam custado uma pequena fortuna, se transformavam em ferro-velho, consumidos na reentrada da atmosfera.
Pensando em economizar (cada quilo satelitizado custava cerca de US$ 1.000), a Nasa sugeriu a construção de um veículo completamente reutilizável para realizar viagens entre os cosmódromos e órbitas próximas, de algumas centenas de quilômetros de altitude.
A primeira concepção foi o desenvolvimento de dois aviões-foguetes: o primeiro levaria o segundo sobre a sua carroceria até 40 km e lhe comunicaria uma velocidade da ordem de 1,5 km/s, voltando ao centro de lançamento, enquanto o segundo iria ao espaço antes de voltar à Terra.
Assim, para ser reutilizável totalmente, o ônibus espacial deveria ser um duplo avião-foguete. Essa solução, se permitia um emprego econômico, bem como um lançamento de satélites a preço reduzido e de fácil manejo, fazia com que a construção de tal foguete-avião fosse muito onerosa.
A limitação de recursos imposta à Nasa obrigou engenheiros a elaborar uma nave recuperável de US$ 5,5 bilhões. Ao assumir o compromisso, a Nasa entrou no caminho que iria conduzi-la à tragédia de 1986. Ao renunciar ao objetivo principal -uma nave inteiramente recuperável- e realizar um veículo misto, metade foguete convencional e metade avião-foguete, a Nasa não mais conseguia nem a economia do primeiro, nem a segurança do segundo.
Para solucionar o problema orçamentário, a Nasa começou por substituir o avião-foguete por dois propulsores de combustível sólido, cada um com 500 toneladas de pólvora e mil toneladas de empuxo na decolagem. A técnica do foguete de combustível sólido apresentou sempre um inconveniente: quando começa a queima da pólvora, o foguete deve funcionar até o fim, cerca de 120 segundos.
Assim, sabiam os técnicos desde o início que um acidente nos dois primeiros minutos do lançamento, poderia se transformar em uma enorme catástrofe.
Para satisfazer as limitações impostas pelo então presidente Richard Nixon, a Nasa teve de eliminar outra vantagem da nave recuperável: os combustíveis líquidos do avião-foguete não foram instalados neles, mas num reservatório externo de 9 m de diâmetro, com 600 toneladas de oxigênio líquido e 100 de hidrogênio líquido, que seria descartado a cada vôo.
O programa das lançadeiras espaciais foi anunciado nos EUA a 5 de janeiro de 1972 por Nixon. Em virtude de diversos problemas técnicos, o primeiro vôo, que deveria ocorrer em 1978, só pode ser realizado em 1980.
Foi construída uma frota de quatro lançadeiras que, até janeiro de 1986, realizaram 24 vôos com sucesso: sete com o Columbia, nove com o Challenger, seis com o Discovery e dois com o Atlantis. Uma quinta foi construída para substituir o Challenger.
As missões executaram três principais objetivos: experiências científicas, atividades comerciais (liberação de cargas em órbita, como satélites de comunicação ou meteorológicos) e missões de manutenção em órbita para reparo ou recuperação de objetos espaciais.
Além dessas missões, as lançadeiras realizaram outras, secretas, com objetivos militares, como os testes relacionados com o programa "Guerra nas Estrelas". Mas não lançaram a estação espacial, sonho dos americanos que hoje usam as instalações da Mir.
A terceira geração das estações orbitais soviéticas (hoje russas) Mir (Paz) foi lançada a 20 de fevereiro de 1986 de Baikonur (Cazaquistão) por um foguete Próton. Em 12 de março, a bordo do Soyuz T-15, foi colocada no espaço a primeira tripulação da Mir.
A estação é dotada dos mais modernos sistemas de abordagem, que compreende seis dispositivos de acoplamento com os quais é possível formar um enorme "trem espacial", expressão do pai da astronáutica russa, Konstantin Eduardovitch Tsiolkovski (1857-1935). Em virtude de seus seis pontos de engate, pode receber veículos pilotados, cargueiros espaciais e módulos-laboratórios com aparelhos científicos.
Importante é ressaltar que o sétimo engate está quase sempre livre para receber uma nave cargueiro ou uma Soyuz de socorro.
O compartimento de abordagem compreende uma cola central com quatro dispositivos laterais perpendiculares. Dois dos pontos de engate são usados quase permanentemente para constituir o eixo principal da estação.
Num deles está acoplado o compartimento de trabalho e, no outro, a nave Soyuz que conduziu a tripulação. Os módulos-laboratórios do trem espacial, bem como os veículos-cargueiros, devem acoplar-se ao dispositivo de engate central, depois um braço manipulador os transfere para um dos dispositivos de abordagem lateral.
A Mir, sucessora das Salyuts, é sem dúvida a primeira estação espacial precursora das cidades orbitais do futuro, de onde irão partir missões exploratórias aos planetas.
Na Mir será possível acoplar até seis módulos ou veículos espaciais ao mesmo tempo, quatro a mais que a Salyut-7. A estação comporta, além dos módulos acoplados, pelo menos um veículo de transporte de tripulação Soyuz TM e, às vezes, também um veículo cargueiro Progress M.
O sistema de acoplamento permitirá o acostamento do orbitador espacial soviético Buran. O primeiro estacionamento de um Buran, junto à estação Mir, estava previsto para o fim de 1991.
A nave recuperável seria lançada sem tripulação, podendo trazer de volta toda ou parte da tripulação da Mir. Seria a primeira vez que uma tripulação russa retornaria à Terra numa nave recuperável.
Tais naves devem assegurar toda a manutenção e eventuais reparos a bordo das grandes estações orbitais, trazendo matéria-prima elaborada em órbita, além de permitir um retorno mais confortável aos cosmonautas.
Com lançamentos que deveriam ocorrer em 1991, a estação Mir estaria completa. Esses dois últimos compreenderão respectivamente um módulo óptico -Spektr (Espectro)- de 20 toneladas e outro ecológico -Priroda (Natureza)- de 11 toneladas.
Segundo seus construtores, o complexo orbital Mir poderá atingir uma massa de 130 toneladas a 140 toneladas, caso venha a reunir um total de cinco ou seis módulos. Assim, a Mir poderá abrigar de três a seis ou até mesmo oito cosmonautas, numa residência espacial de 400 metros cúbicos.
A vida útil da Mir deveria ser de nove anos. Antes que viesse a ser desativada, os russos esperavam colocar em órbita, em 1994, o bloco central da Mir-2, estação espacial modular de quarta geração.
Com a capacidade de abrigar até nove ou doze cosmonautas, a nova estação deveria servir de centro industrial para a fabricação de matérias-primas espaciais e de produtos biológicos só possíveis de serem obtidos em microgravidade.
Também poderia servir de base de trabalho para a montagem, em órbita, do veículo espacial que será lançado com destino ao planeta Marte, no início do século 21.
Se compararmos a potência da Mir com a da estação orbital Freedom, dos EUA, que deveria estar em órbita na mesma época, compreendemos as enormes preocupações do governo americano. Hoje, tal preocupação não mais existe.
As missões Mir-2 e Freedom foram canceladas e substituídas pela Issa (Estação Espacial Internacional Alpha), a ser lançada por um consórcio de nações.
Os EUA ganharam dos russos a corrida à Lua, mas perderam o mercado dos transportes espaciais para os europeus, que, com os lançadores Ariane, lideram os lançamentos comerciais de satélites, e, finalmente, perderam para os russos a corrida à estação espacial.

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