São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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A arte de fazer os mortos falarem

JEAN JOURDHEUIL
ESPECIAL PARA "LIBÉRATION"

Impossível dizer algo satisfatório sobre um amigo que morreu, sobretudo quando se trata de um amigo tão problemático, perspicaz e prazeroso quanto Heiner Müller. De nada serve evocar recordações e falar de si mesmo, para compensar a incapacidade de falar do morto ou de fazê-lo falar.
Ao longo de sua vida, em diversas ocasiões, Heiner Müller achou-se em pontos nevrálgicos: em sua cama, ainda criança, quando seu pai foi detido pelos nazistas, ele não dormia, mas fingia dormir; em Berlim, no dia seguinte ao fim da Guerra Mundial; novamente em Berlim, no momento da queda do Muro -e aí também ele não dormia, mas fingia dormir e "olhava a história no branco dos olhos".
Seu modo de pensar quase sempre o fazia reconhecer o ponto nevrálgico de uma situação e espontaneamente refletir sobre o que não devia e, com uma pontaria certeira, ele o declarava. E o establishment dizia: "Ele nos provoca!". Não provocava; ele próprio era uma provocação. Sua obra não diz outra coisa.
Por muito tempo, talvez sempre, ele esteve rodeado de pessoas que não queriam ouvi-lo, e por isso não foi preciso forçar sua natureza para que nele predominassem os impulsos negativos e o gosto jovial pela destruição, aliados a uma ferocidade infantil que compunha seu encanto.
O teatro de Heiner Müller terá sido para muitos de nós uma formidável encruzilhada, em que se encontram, lado a lado, antigos e modernos, jovens e velhos, vivos e mortos -uma encruzilhada em forma de constelação que, em muitos aspectos, nos serviu como cartografia política, poética e filosófica de toda uma época.
Ele nos mostrou de maneira exemplar que podemos sair da fortaleza brechtiana sem renegar o tempo que nela passamos, que o teatro pode reconciliar-se com a poesia ou com a poética do conto (a narrativa segundo Kafka). Ao imaginário geométrico newtoniano (em Brecht galileano), que é tradicionalmente o do teatro, ele substituiu uma álgebra da narrativa e da representação, preparando-o assim para a época das mídias eletrônicas.
Esse notório delinquente tinha suas fidelidades e preocupava-se com sua responsabilidade. Ele não fez apenas a crônica do que foi a Alemanha Oriental (sua pátria escolhida livremente, na época em que a utopia tinha direito de cidadania). Não apenas mostrou por meio de seu teatro, a seus concidadãos e a todos seus espectadores potenciais, o que é e o que foi a Alemanha (da qual se empenhava em reunir em sua obra as imagens, as caras, separadas e exclusivas entre si, talvez irreconciliáveis). Também, com uma invejável obstinação e num contexto pouco inclinado a reconhecê-lo, conduziu o trabalho de luto tanto em relação à Alemanha nazista quanto à Alemanha sob a zona de influência soviética.
Heiner Müller concebia o teatro, a poesia dramática, como a arte de fazer os mortos falarem: "É que os espectros não dormem/ Nossos sonhos são seu alimento preferido". Aqueles que se interessam pelo teatro de Heiner Müller tomarão a peito fazer dele, de agora em diante, um espectro. Ele próprio preparou minuciosamente o terreno.

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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