São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 1996
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O funeral do morcego

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Entrei na sala, pela manhã, e encontrei um clima de batalha campal. Esbaforido, lábios exangues, o contínuo arfava num canto do meu banheiro. É um senhor de meia-idade, muito educado e que atende pelo apelido de Coração. Talvez por isso, ou por seu aspecto, pensei num infarto, coisa grave, letal.
Nada disso. Ele sempre chega antes para providenciar café, água, essas coisas. Ao abrir a porta do banheiro (banheiro histórico, cleopatrício, nele se banharam em épocas alternadas Albert Sabin e Juscelino Kubitschek) esbarrou num morcego que entrara pela janela.
Foi -segundo ele- uma luta de vida e morte. O morcego tinha o tamanho de uma pomba e queria mordê-lo, justo na garganta. Pela hora matinal não podia ser um vampiro vindo da Transilvânia, que é longe pra burro da praia do Russel.
Como no boxe, venceu o melhor. Coração sacrificou-o com uma porrada certeira e colocou-o numa caixa vazia de "Romeo y Julieta" -que eu acabara de fumar na véspera. Ele queria me mostrar o cadáver, mas eu recusei. Preferi me deter no próprio Coração, que parecia bater pino.
Só então me dei conta de que Coração não se chama Coração. Durante anos pensei que o verdadeiro nome dele fosse Ricardo, que alguém, por brincadeira, o chamasse de Ricardo Coração de Leão e depois, no forçado copidesque diário, fosse abreviado para simples e bastante Coração.
Há anos o chamo de Coração, que todos o chamam de Coração -e não há registro confiável de que algum dia ele tenha reclamado. Mas naquele transe, vendo-o pálido, lábios exangues como as virgens nas novelas de má literatura, achei que seria falta de respeito chamá-lo pelo apelido e me lembrei do Ricardo.
Coração, que já estava exangue, ficou mais exangue, lívido. Além do ataque do morcego, recebia afronta pessoal. "Não me chamo Ricardo. Meu nome é Ananias!" Para disfarçar a gafe, decidi dar uma olhada no morcego estatelado na caixa de charutos. Mas Coração, recém-Ananias, já sumia com o pequenino esquife, levando em funeral o morcego e a indignação.

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