São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 1996
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Vicentinho

FREI BETTO

Teu "erro", Vicentinho, é ser negro, nordestino, operário, sindicalista e... inteligente e íntegro. Não haveria nesse teu sangue potiguar umas gotas judaicas? Nem alguma conotação homossexual responsável pela ciumeira que provocaste?
Neste país, onde se concede à elite tudo e aos lascados as batatas podres, é muita ousadia o presidente da CUT impedir que o presidente da República aprove a toque de caixa o remendão da Previdência.
Beira a humilhação ver o Congresso desprovido do monopólio do direito de legislar. E como ousas desmentir o ministro e o presidente que, acolitados pela mídia eletrônica, aclamaram que tu havias firmado um acordo?
És um homem de esquerda e bem sabes quantos companheiros, com as vistas embaçadas pela poeira do Muro de Berlim, ainda não aprenderam a distinguir entre confronto e negociação. Fora de situações limites, o confronto apenas infla o ego de quem agride, mas quase nunca faz avançar conquistas. Negociação é a arte de acordar sem ceder nos princípios. Já negociata, ensinava o Barão de Itararé, "é um bom negócio para o qual não fomos chamados".
Não foi entre seus arrozais, e sim à mesa de negociação, em Paris, que o Vietnã obrigou os EUA a engolirem a derrota e cessarem a guerra.
Após décadas de centrais sindicais atreladas a partidos, não é fácil para a esquerda viver na prática o que prega na teoria: a autonomia da esfera sindical em relação à política partidária.
Nisso dás uma lição de firmeza e, dando a volta por cima, consegues muito mais: o fórum nacional sobre a Previdência, no qual sociedade civil e política poderão, enfim, vivenciar a democracia que tanto proclamam. Tu, que te recusaste a assinar um acordo sem antes debatê-lo na CUT, agora consegues envolver na pauta previdenciária todos os setores representativos do país.
A direita, não podendo cooptar-te, tenta desgastar-te. Nos últimos anos ela cooptou lideranças sindicais que hoje desfrutam de sedes faraônicas e mordomias de marajás. Gente que há anos não pisa numa fábrica e está longe de te imitar nesse hábito de, uma vez ao mês, retornar ao teu posto de trabalho como metalúrgico numa montadora de veículos.
Ela também cooptou companheiros que, atordoados com a queda do Muro de Berlim em suas cabeças, agora se envergonham do próprio passado e já não se dão conta de que a utopia libertária se justifica tanto mais quanto maior é a multiplicação dos pobres.
Asceta, quem te conhece sabe que não tens vícios, nem aceitas as mordomias que te são oferecidas e, no ABC, num modesto apartamento alugado, vives do parco salário com o qual sustentas seis filhos. Nada possuis. Acalentas o justo sonho de qualquer peão: ter uma casa, um telefone e um carro. Cristão, gostas de rezar, de ler a Bíblia e de participar de celebrações, sem imprimires à tua fé um caráter demagógico.
Acusam-te de contraditório por saberes que negociação é diálogo, e diálogo significa "dois logos", a tua razão e a do interlocutor. Fosse o contrário, serias caricaturado como um xiita. Aliás, conheces algum líder popular considerado equilibrado pela mídia? Lula, o sapo barbudo, se fosse eleito não iria apropriar-se da poupança de todos nós? José Rainha não é um incendiário invasor de terras? Jair Meneguelli, quando no teu lugar, não era um radical carrancudo?
Se queres agradar a quem sabe que tua atitude dificulta a privatização da Previdência, siga o exemplo de Michael Jackson. Dances conforme a música, embranqueças a pele, cubra-te de perfumes e, então, serás ovacionado pela elite. Mas perderás o carisma que hoje te autoriza a ser o legítimo representante de milhões de empregados e desempregados que confiam em teu talento político e em tua transparência ética.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO (FREI BETTO), 51, frade dominicano e escritor, é membro da Fundação Sueca de Direitos Humanos, assessor da Central de Movimentos Populares e autor de "A Obra do Artista -Uma Visão Holística do Universo" (Ed. Ática), entre outros livros.

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