São Paulo, terça-feira, 1 de outubro de 1996
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Demi Moore e Sharon Stone fingem nos amar

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fui ver o "Striptease" com a Demi Moore e saí no meio. Filme horroroso. Mas saí pensando em "Frineia, a Cortesã do Oriente" o primeiro filme de sacanagem que vi em minha vida, cujo momento culminante era quando a atriz, em pleno tribunal romano, deixava cair o manto e víamos sua espantosa nudez.
Como eram belas as atrizes francesas dos anos 50 e seus corpos nus! Ali estava meu destino de fogo e água; eu sabia que alguma coisa de terrível me aconteceria por causa daqueles corpos macios, a mim, virgem com 15 anos.
O cinema era o Alaska, em Copacabana, onde íamos nos entrincheirar com as meninas ou para um amasso desesperante que nunca, nunca dava em nada a não ser uma terrível dor nos rins (ah... o pânico das virgens invencíveis dos anos 50...) ou então para a humilhante solidão das punhetas, diante das rumbeiras como Maria Antonieta Pons. Mas hoje não estou para climas nostálgicos. Qualquer hora dessas, eu escrevo sobre o calvário sexual dos adolescentes dos anos dourados.
Ontem, larguei a Demi Moore no meio. E saí pensando que existe sacanagem brasileira e sacanagem americana.
Para o americano, o maior pecado não está no sexo. O pecado está na ofensa a Deus. "Goddamn" é pior que "fuck", por exemplo, quase moeda corrente.
Sexo para brasileiro precisa do pecado para existir. Sexo americano não precisa. Ele é mais uma quebra no ritmo do trabalho. Sexo para colonizados de Portugal é uma ofensa a Cristo. Na América, é ofensa à produção. Sacanagem brasileira leva ao inferno. Sacanagem americana atrapalha o progresso. Por isso, os americanos inventaram o sexo industrial, a sacanagem competente.
Demi Moore parece uma máquina, uma "Schwarzenegger fêmea". Sua sensualidade tem a rapidez dos efeitos especiais. O sexo que Demi Moore nos vende é um luxo de civilização, um avanço tecnológico. Ali não há o elogio da delícia ou da poética do prazer, como na Europa ou no Oriente. Fala-se do funcionamento dos corpos como se fala de uma BMW.
Uma mulher tem mil cilindradas ou é um "avião". A qualidade das transas é medida pelo bom acoplamento das "interfaces", pelo encaixe perfeito das peças de precisão. Uma vagina tipo B encaixa em pênis A que gira em engrenagens de orgasmos múltiplos. São mecanismos, órgãos sem corpos.
Sexo político Sexo já foi uma luta revolucionária, nos anos 60. Uma transgressão contra a repressão da burguesia. Hoje é uma exigência de mercado. Se não fosse a pausa da Aids, ia se vender orgasmo em boutiques.. A sacanagem modernista era política, uma metáfora do "devir", uma aventura da revolução permanente. Hoje é um produto em competição. Todo ano, surge um novo modelo. A proibição portuguesa que sempre nos animou cede à pressão americana da liberdade simulada.
A liberdade de mercado nos levou a um "mercado da liberdade". Tudo tem de ser brutalmente visível, na luz forte dos "supermarkets", para que não haja nada sombrio, nada ausente, nada pessoal. O oculto é o lugar da intimidade. Assim era o romantismo modernista. Já o inferno é o lugar da visibilidade total.
Quem diria que nossa prisão seria um campo sem grades? A verdadeira proibição é a ausência de proibições, ou melhor, a proibição de ausências. Acabou o Segredo, que era essencial para o prazer. O prazer era clandestino. Sexo era um pecado sombrio.
Nos anos 50, por exemplo, muito se exigia dos punheteiros. Não havia ainda a indústria das revistas de sexo e cada menino tinha de criar sozinho suas fantasias. Havia uma revista "Saúde e Nudismo", com vagas suecas nuas em monocromia azulada.
A repressão sexual era estimulante para a imaginação dos jovens. Tínhamos de pensar em primas, nas mães dos amigos. Criávamos enredos tipo: "Aí, a mãe do fulano chegou de ligas negras e me agarrou no corredor".
Os moços se esvaíam em orgasmos literários, dramáticos. Havia enredo, personagens, e o clímax era atingido no "grand finale". Não havia ainda o sexo audiovisual. Punheta era literatura. Hoje é videoclipe. Eu tinha um amigo que se masturbava com as fotos do livro de medicina legal do pai juiz. O sexo era nossa fome de crime. Hoje, somos masturbados pelas imagens da indústria gráfica.
Pornô urbano e rural O filme de Demi Moore e os vídeos de sacanagem mostram que existe a "teoria da dependência" no sexo. A globalização e a exclusão aparecem até nos filmes pornográficos. Há muitas diferenças.
Os filmes americanos de sacanagem falam de uma sociedade abundante de atletas sexuais. Para além das camas, pressente-se um mundo de anabolizantes, o ruído de academias de malhação.
No filme de sacanagem brasileiro, vemos atrizes mal pagas e com celulite. No filme pornô americano, louva-se o progresso social. No pornô brasileiro, pressente-se o atraso. O sexo no pornô americano é um luxo aerodinâmico. O pornô brasileiro é uma carência alimentar. Nesse sentido, pornô americano é épico e existencial. O pornô brasileiro é realista e político. O pornô americano é urbano. O pornô brasileiro é rural.
Eu vi um em que estupravam uma galinha. O filme se chamava "A Galinha do Rabo de Ouro", com a esforçada Fernanda Glauber, filme muito inferior, contudo, a "Splendor in the Ass", com a grande Tori Welles.
As atrizes de lá são deusas perversas e ativas. As nossas pornô-atrizes são pobres empregadas obedientes. Há um orgulho nas atrizes americanas. Aqui, há necessidade. Os atores americanos trabalham por um prazer perverso. Os atores pornô brasileiros, por um prato de comida. O pornô americano é a louvação do progresso. O nosso é a estética da fome.
Demi Moore finge ser erótica. Seu tesão é um simulacro, como em Madonna. Tudo é falso, como nos filmes de violência. Assim como há violência nos filmes de sexo, há a doença sexual nos filmes de ação e morte. O furador de gelo de Sharon Stone rima com as metralhadoras fálicas de Stallone. Os orgasmos e as mortes são efeitos especiais. Sharon e Moore são programadas, são clônicas. Elas apenas fingem nos amar, mas não nos dão nada. Nenhuma delas quer ser uma maravilhosa heroína da liberdade.
Elas são frias e comerciais.
Nenhuma delas morrerá apaixonada por nós, como fez Marilyn Monroe.

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