São Paulo, sábado, 5 de outubro de 1996
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Regionalismo aberto?

LUIZ A. P. SOUTO MAIOR

Hoje, o discurso econômico politicamente correto exalta as excelências da liberdade comercial e do sistema multilateral de comércio.
Na verdade, porém, como todo discurso político, esse também tende a refletir menos as convicções -e menos ainda as intenções- de quem o pronuncia do que aquilo que ele ou ela deseja seja feito pelos que o escutam.
Os responsáveis pela política comercial das duas maiores economias do planeta -os Estados Unidos e a União Européia- não fogem à regra. Sem excessivo cuidado com a coerência, acenam com a possibilidade de abertura dos seus imensos mercados como meio de conseguir acesso preferencial aos dos seus parceiros menores.
Essa é -muito simplificadamente, porquanto ignora considerações políticas também presentes- a idéia subjacente à proposta americana da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e à rede de acordos preferenciais da UE com os países da sua periferia oriental e meridional.
A frase mágica, com a qual se resgataria a coerência perdida, é "regionalismo aberto". A idéia central é que o regionalismo de hoje levaria ao multilateralismo de amanhã.
Tal ambiguidade gera um duplo padrão de comportamento, bem ilustrado, há poucos meses, em declarações do subsecretário de Comércio dos EUA, Stuart Eisenstat, publicadas na imprensa brasileira.
Para aquele alto funcionário americano, a "solução real" para os problemas de acesso de alguns de nossos produtos ao mercado do seu país só seria encontrada com a negociação da Alca, ou seja, pela via das preferências regionais.
Ainda segundo a imprensa, Eisenstat teria três mensagens para o Brasil: as relações entre os dois países são "muito fortes e sólidas por causa (grifo meu) das reformas econômicas e da liberalização"; devemos apoiar o processo da Alca; temos "a obrigação" de liderar os países em desenvolvimento na OMC no sentido de um maior liberalismo.
Em suma, espera-se do Brasil a liberalização econômica -que condicionaria inclusive a solidez das relações com Washington- e mesmo o proselitismo junto aos demais países em desenvolvimento. Em sentido inverso, o acesso ao mercado americano de certos produtos brasileiros estaria condicionado, porém, à nossa aceitação do arranjo preferencial de âmbito continental defendido pelos EUA.
Para o Brasil, a estratégia adotada pelos dois grandes centros da economia mundial -que, somados, compram quase a metade das nossas exportações- criou uma situação delicada.
Não podemos ficar alheios à eventual -embora problemática- formação de um vasto mercado preferencial hemisférico nem indiferentes à desvantagem competitiva em que nos coloca o tratamento preferencial da UE a uma vintena de países nossos concorrentes.
Por outro lado, buscar o estabelecimento de áreas de livre comércio com cada um daqueles nossos grandes parceiros suscita problemas que vão além da complexidade inerente a negociações de tal envergadura.
Nos dois casos, coloca-se a problemática da integração entre economias em níveis muito diferentes de desenvolvimento. E como conciliar vínculos preferenciais com dois grandes centros econômicos que competem entre si pelo mercado latino-americano?
Pragmaticamente, o Brasil tem dado prioridade à integração sul-americana, centrada no Mercosul, e procura negociar em bloco com seus parceiros desenvolvidos, o que melhora o poder de barganha do lado latino-americano.
Mas a integração regional também é prenhe de dificuldades. Nossos amigos argentinos, por exemplo, preocupados com a recente diminuição do seu superávit comercial conosco, parecem querer sanar o problema com a criação do que poderíamos chamar de desincentivos voluntários às exportações brasileiras para o Mercosul -o avesso do que se espera num mercado comum. Setores das economias colombiana e venezuelana parecem receosos de uma eventual área de livre comércio com o Mercosul.
Nesse quadro complexo, existe o risco -particularmente grave para países médios como o Brasil- de que os interesses nacionais e setoriais conflitantes reduzam o tão louvado regionalismo aberto a um mero multilateralismo compartimentado.

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