São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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A lei da selva nas relações externas

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

No editorial A Selva e a Lei, publicado no dia 3 de outubro, esta Folha lamenta a iniciativa norte-americana de iniciar um processo administrativo interno a respeito do programa automotivo brasileiro. O jornal argumenta, com razão, que no mundo pós-guerra fria são intoleráveis as ações unilaterais: o foro adequado para dirimir disputas comerciais é a recém-criada Organização Mundial do Comércio.
A marca da política externa norte-americana, inclusive de sua política comercial, tem sido o unilateralismo. A última e mais requintada aberração foi a lei Helms-Burton, que propõe sanções a países que mantenham relações comerciais com Cuba. Não foram menores os sapos que muitos países tiveram de engolir na aprovação das leis de patentes ou na aceitação de reformas econômicas empurradas goela abaixo, sem considerar as condições das economias nacionais.
Entre as tropelias, essas são apenas as mais conhecidas. A maioria das truculências, poucos sabem, é praticada dentro e por meio dos organismos ditos multilaterais.
Para quem pretende saber como os Estados Unidos vêm se utilizando desses organismos "multilaterais" para impor pontos de vista e recomendar políticas, é obrigatória a leitura de um artigo do economista Robert Wade publicado na "New Left Review" de maio/junho deste ano. Wade, ex-funcionário do Banco Mundial, está entre os mais respeitados especialistas nas questões relativas ao desenvolvimento dos países da Ásia. Publicou sobre este tema, em 1990, pela Princeton University Press, o livro Governing the Markets.
No artigo da "New Left", Wade relata os percalços e as peripécias que acompanharam a elaboração do estudo publicado pelo Banco Mundial em 1993 sobre o "milagre econômico dos países asiáticos" (East Asian Miracle). O documento foi encomendado e financiado pelo governo japonês para demonstrar que a rápida e bem-sucedida modernização dos países da região foi alcançada por meio de políticas que não se coadunam com o receituário aberturista e liberalizante dos ideólogos de Washington, nem sofreram os inconvenientes da "economia de comando" característica do socialismo soviético.
O alvo dos japoneses era o famoso Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1991: o Desafio do Desenvolvimento, que, nas palavras do então presidente do banco, Barber Conable, "sintetiza e interpreta as lições de 40 anos de desenvolvimento". As análises e as recomendações de políticas contidas no relatório podem ser encontradas sob uma forma condensada e ligeiramente modificada no texto recente de Gustavo Franco. Trata-se, na verdade, de uma codificação do catecismo que hoje define as ações dos governos e as opiniões da mídia nos países em desenvolvimento ou emergentes.
Por isso mesmo, os japoneses tinham interesse em que as investigações sobre o "milagre asiático" se concentrassem nos seguintes pontos: 1) na avaliação da importância das políticas industriais; 2) no caráter decisivo do crédito direcionado e favorecido para o investimento nos projetos definidos como prioritários; 3) nas políticas destinadas ao setor externo, chamadas de "integração estratégica", por envolverem simultaneamente o estímulo às exportações e o controle das importações; e 4) nos mecanismos de decisão "por consenso", envolvendo as burocracias de Estado e o setor privado.
Infelizmente não há espaço para reproduzir aqui a história do estudo sobre o desenvolvimento dos países asiáticos, contada minuciosamente por Wade em seu artigo. Posso garantir que é uma história de horror. Pelo menos para quem supõe respeito mínimo às regras de seriedade no trabalho de pesquisa em economia e ciências sociais ou simplesmente adota critérios elementares de honestidade intelectual.
A equipe de economistas, chefiada por John Page e encarregada de produzir o relatório, foi submetida a pressões insuportáveis nos vários escalões do banco. O objetivo era evitar toda e qualquer conclusão que apontasse para a eficácia das políticas de intervenção e de coordenação do Estado. Isso era feito a despeito de todas as evidências: mais importante era preservar a incolumidade das teses sustentadas pelos ideólogos americanos em nome de seu Estado Nacional.
Quanto aos diretores latino-americanos com assento no "board" do Banco Mundial, o comportamento foi o de sempre: concordavam em privado com os japoneses, mas votavam com o patrão.
Aviso às Polianas da nova ordem mundial: não se trata de denunciar uma conspiração, mas de apresentar alguns aspectos do funcionamento de um sistema de poder.

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