São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um mestre iconoclasta

RICHARD RORTY
ESPECIAL PARA A FOLHA

A morte, em junho último, de Thomas Samuel Kuhn, o mais influente filósofo de língua inglesa desde a Segunda Guerra Mundial, foi ocasião de muitos obituários extensos e respeitosos. Muitos deles referiam-se a ele antes como historiador da ciência que como filósofo. Kuhn não teria feito objeções a essa descrição, que entretanto é enganadora.
Se tivesse escrito um obituário, não teria deixado de chamar Kuhn de filósofo, e por duas razões. Em primeiro lugar, creio ser este o termo mais apropriado para alguém que remapeia a cultura, isto é, sugere um modo original e promissor de pensar a relação entre vários setores da atividade humana. A grande contribuição de Kuhn foi a de indicar uma nova direção, cujo impacto sobre a auto-imagem de várias disciplinas foi enorme.
Minha segunda razão é o ressentimento pelo fato de Kuhn ter sido constantemente tratado por meus colegas filósofos como, na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe na comunidade filosófica, quando não como um intruso que não tinha por que se meter com uma disciplina para a qual não tinha a formação adequada. Não creio que se deva fazer grande caso da distinção filósofo/não-filósofo, e de modo algum quero torná-la mais aguda. Mas sempre achei irritante que pessoas que usavam o título de "filósofo" como honraria quando falavam de si próprias e de seus amigos se julgassem no direito de não concedê-lo a Kuhn.
Kuhn foi um dos meus ídolos, porque a leitura de "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962) -no Brasil, publicado pela Perspectiva- proporcionou-me a sensação de uma súbita revelação. O fato de ele abordar problemas filosóficos por assim dizer "pela lateral" -tendo-se doutorado em física antes de se tornar historiador autodidata da ciência do século 17- não me parecia razão suficiente para excluí-lo de nossas fileiras. A principal razão pela qual Kuhn foi mantido à distância pelos professores de filosofia está no domínio que a tradição da filosofia "analítica" exerceu no mundo acadêmico anglófono. Essa era uma tradição que se orgulhava de ter trazido a filosofia para mais perto da ciência -logo, para mais longe da literatura.
A última coisa que os filósofos dessa tradição queriam ver abalado era o caráter distintivo da ciência; assim, não estavam prontos para ouvir de Kuhn que o sucesso da ciência não se deve à aplicação de um "método científico" específico, e ainda que a substituição de uma teoria científica por outra não é algo que dependa apenas da lógica fria e precisa, sendo antes análoga ao processo de substituição de uma instituição política por outra.
A grande contribuição de Kuhn ao remapeamento da cultura reside em ter-nos feito ver que os cientistas naturais não têm uma via de acesso privilegiado à realidade e à verdade. Ele ajudou a desmontar a hierarquia tradicional de disciplinas, uma hierarquia que remonta à imagem platônica da reta do conhecimento.
Nessa hierarquia, a matemática (que usa lógica pura, sem nenhum elemento de retórica) está no alto, enquanto a crítica literária e a persuasão política (que usam muita retórica e nenhuma lógica) estão na posição mais baixa. Kuhn dissolveu a distinção entre lógica e retórica ao mostrar que mudanças revolucionárias na ciência dependem menos de seguir uma linha de inferências que de mudar a terminologia em que as hipóteses concorrentes são formuladas (assim reformulando igualmente os critérios de relevância). Kuhn ajudou assim a romper com a idéia de "cânones do raciocínio científico" que Aristóteles, ao contrário de Galileu, supostamente não teria observado.
Por essa via, ele ajudou a tornar obsoleta a questão de "como trazer nossa disciplina para o caminho seguro da ciência?". Kant propusera essa questão no domínio da filosofia; Husserl e Russell tinham respostas divergentes; B.F. Skinner pedia aos psicólogos que se restringissem a um vocabulário de noções como "estímulo", "resposta", "condicionamento" e "reforço"; e Northrop Frye sugerira uma taxonomia dos mitos, uma série de escaninhos que os críticos literários do futuro cuidariam de preencher.
É claro que tornar obsoleta uma tal questão não era tarefa para um homem só. Kuhn tinha atrás de si uma série de autocríticas da filosofia analítica, da parte do último Wittgenstein, Quine, Sellars, Goodman e outros -autocríticas que eram um dos principais tópicos de discussão no período (1955-1965) que viu a publicação de "A Estrutura das Revoluções Científicas".
Todos esses filósofos autocríticos haviam, em sua juventude, aceito a sugestão russelliana de que "a lógica é a essência da filosofia", bem como sua visão de filosofia como análise de noções complexas rumo a seus elementos mais simples. Mas, num certo momento, todos se tornaram céticos quanto à existência de uma "lógica" que os guiaria ao longo de uma tal análise, bem como quanto à existência de elementos simples que constituiriam o resultado final da análise. Os candidatos de Russell a essa função -os dados da experiência sensorial, as idéias claras e distintas de "e", "não" e "se-então", que formam o vocabulário da lógica simbólica elementar- já não pareciam satisfatórios. Goodman mostrou que o próprio ideal de simplicidade é apenas uma entre várias opções de descrição.
Sellars, à maneira de Kuhn, mostrou que não há maneira a priori de selecionar, em nossas experiências sensoriais, aquilo que é "dado à mente" e aquilo que é "adicionado pela mente". Wittgenstein perguntou-se "Por que pensávamos que a lógica fosse algo de sublime?". Quine e Goodman, tomando apoio em Skinner, mostravam que talvez fosse melhor entender a lógica como um padrão de comportamento humano e não como uma força imaterial a moldar esse comportamento.
Ninguém jamais pensou que tais críticos do que Quine chamava de "dogmas do empirismo" -aquelas doutrinas que Russell e Carnap tinham por evidentes- não fossem filósofos. Pois nenhum deles ameaçava a auto-estima profissional ou o hábito da autocongratulação que fazia com que todo filósofo analítico desse graças a Deus por ter nascido na época certa -uma época em que a filosofia tornara-se clara, rigorosa e científica. Mas Kuhn punha a perigo essa auto-estima, pois a leitura de seu livro fez muito filósofo analítico pensar se a noção de "clareza científica" era afinal tão clara, rigorosa e científica quanto supunham.
Também começava a duvidar que a lógica simbólica trouxesse algo mais que elegância estilística à prosa dos filósofos analíticos; também já não sabia se a clareza e o rigor de que tanto nos orgulhávamos era algo mais que uma certa preferência por responder a algumas questões e por ignorar outras. Tanto quanto era capaz de perceber, o que nos fazia "analíticos" não tinha nada a ver com um método de "análise conceitual" ou de "investigação da forma lógica". O que nos unia era o fato de levarmos a sério algumas doutrinas propostas por Carnap e Russell a ponto de querermos refutá-las.
A noção de história da ciência proposta por Kuhn -a saber, a história das "matrizes disciplinares" na história da ciência- foi de grande ajuda para mim quando tentei formular esse diagnóstico da filosofia analítica. O mesmo vale para sua noção de paradigma. Depois de ler a "Estrutura", comecei a entender a filosofia analítica como uma maneira entre outras de fazer filosofia, e não mais como a descoberta de como assestar a filosofia de uma vez por todas no caminho seguro da ciência. Isso levou a certa irritabilidade no convívio com os meus colegas, a maioria dos quais pensava que Kuhn não fizera muito mais que mostrar que certos pontos da visão de Carnap de uma "lógica da ciência" necessitavam de algumas correções menores; esses colegas pareciam não ver qualquer implicação metafilosófica na obra de Kuhn.
Comecei a pensar que Carnap e Russell haviam sugerido uma certa versão de filosofia, tal como Aristóteles, Locke e Kant haviam feito. Cada um destes havia criado uma matriz disciplinar e, por essa via, uma tradição filosófica -uma tradição de pessoas que levava a sério a terminologia e a argumentação dos mestres. Nessa visão kuhniana, Carnap e Russell haviam estabelecido um modelo do que deveria ser a filosofia, enquanto a "filosofia analítica" dedicava-se a testar a utilidade desse modelo. O modelo podia mostrar-se profícuo, tal como podia mostrar ser apenas uma maneira de requentar velhas controvérsias filosóficas num novo jargão. Só o tempo diria. Mas não havia razão a priori para pensar que a lógica simbólica ou o "rigor-e-clareza" valeriam a pena. Não havia razão para pensar que o modelo positivista de filosofia fosse mais científico ou mais rigoroso que o modelo de Hegel, Husserl ou Heidegger.
Não estou querendo dizer que Kuhn demonstrou o vazio da noção de "cientificidade". Tal como outras idéias vagas e estimulantes, também esta pode ser preenchida e concretizada de várias maneiras. Uma delas consiste em inquirir se uma disciplina pode produzir previsões precisas, de modo a poder ser aplicada à engenharia ou a qualquer outro propósito prático. A mecânica de Galileu era ótima nisso, ao contrário da aristotélica. A medicina antes de Harvey oferecia menos previsões confirmáveis que depois de Harvey.
Mas Kuhn ajudou-nos a perceber que não há sentido em tentar explicar um maior sucesso preditivo afirmando, por exemplo, que Galileu e Harvey eram "mais científicos" que Aristóteles e Galeno. Ao mostrarem que somos capazes de fazer mais previsões do que pensávamos, esses dois homens contribuíram para alterar o sentido de "ciência" de modo que "ser capaz de fazer previsões úteis" passou a ser um critério de "cientificidade" mais importante do que fora antes.
É claro que essa maneira de determinar o conteúdo da noção de cientificidade não é de qualquer utilidade quando se passa à filosofia. Os filósofos jamais foram bons em predições. Assim, para propósitos metafilosóficos, o critério de cientificidade tem que ser a capacidade de conquistar a concordância entre os pesquisadores. A razão pela qual os admiradores da física têm desconfiança diante da crítica literária deriva da ausência de consenso quanto à interpretação correta de um texto: parece que, de algum modo, qualquer um pode dizer o que bem entender a respeito do significado do texto e ainda assim ser levado a sério como crítico. No extremo oposto, os matemáticos em geral são unânimes quanto à validade de um teorema. Os físicos estão mais próximos dos matemáticos, enquanto os cientistas sociais estão mais para o lado da crítica literária.
O problema é que a concordância intersubjetiva sobre quem teve êxito e quem fracassou só é fácil de determinar se os critérios de sucesso são dados de antemão. Se tudo o que se deseja é o alívio rápido da dor, a opção por um analgésico é natural (ainda que a vitória possa ter efeitos colaterais indesejáveis e tardios). Se o que se quer da ciência é apenas a capacidade de previsão, há um modo fácil de decidir entre duas ou mais teorias (ainda que esse critério devesse levar, num certo momento histórico, à adoção da astronomia ptolemaica, de preferência à copernicana).
Se tudo o que se quer é demonstração rigorosa, nada mais fácil que checar as provas dos teoremas matemáticos e entregar os louros a quem tiver mais teoremas aprovados (ainda que o prêmio acabe por ir para algum trapaceiro, autor de teoremas irrelevantes). Mas a concordância intersubjetiva fica mais difícil de atingir tão logo os critérios de sucesso comecem a proliferar ou a ser questionados.
A leitura de Kuhn levou-me a pensar que, em vez de mapear a cultura com uma régua hierárquica epistêmico-ontológica, encimada pelas categorias de "lógico", "objetivo" e "científico", deveríamos antes tentar mapear a cultura por meio de um espectro sociológico indo da esquerda caótica -em que os critérios estão sempre em mutação- à direita conformista -em que eles estão, ao menos por algum tempo, firmemente estabelecidos.
Pensar nos termos de um tal espectro possibilita perceber o movimento de uma dada disciplina rumo à esquerda nos períodos revolucionários e rumo à direita nos períodos estáveis e monótonos -que Kuhn chamava de períodos de "ciência normal".
No século 15, quando quase toda a filosofia era escolástica e quase toda a física era aristotélica, ambas as disciplinas estavam bem à direita. No século 17, ambas estavam bastante à esquerda, enquanto a crítica literária estava muito mais à direita do que estaria depois do movimento romântico. No século 19, a física se estabelecera e rumara à direita, coisa que também a filosofia tentava desesperadamente fazer. Mas esta última acabaria por se cindir em tradições separadas, cada qual reclamando para si o título de filosofia "genuína", a partir de critérios próprios de sucesso profissional. Sob este aspecto -falta de consenso internacional sobre o que é válido ou inválido-, a filosofia está muito mais próxima da crítica literária que de qualquer ciência natural.
Essa nova visão sociológica da relação entre as disciplinas fez com que muita gente pensasse em termos mais relaxados sobre seus próprios métodos de pesquisa ou sobre o produto -ciência ou opinião?- de seus esforços profissionais. Desde que começaram a ler Kuhn, os sociólogos começaram a aceitar mais facilmente a grandeza intelectual de Weber e Marx, a despeito de não terem tido acesso aos métodos contemporâneos de análise estatística. Isso por sua vez lhes permite reconhecer que sociólogos contemporâneos que se abstêm de usar estatísticas -David Riesman ou Paul Starr, por exemplo- podem ser admitidos como praticantes honrados de seu ofício. Tomemos um outro exemplo: desde que leram a "Estrutura", os psicólogos parecem menos ansiosos por saber se a psicologia freudiana é tão "cientificamente respeitável" quanto as experiências de Skinner com pombos.
A essa altura, todas as ciências sociais passaram por um processo de "kuhnização", marcado por uma maior disponibilidade para admitir que não há um modelo único de pesquisa relevante num dado setor da cultura. Tais critérios mudaram no curso da história e continuarão a mudar. Ainda que a filosofia tenha até certo ponto se mantido à parte desse processo, creio haver também aí uma maior disponibilidade em historicizar as questões -isto é, em conceder que não há qualquer divisor de águas que nos permita separar o "sentido" do "não-sentido", em admitir que mesmo Hegel ou Heidegger podem ter feito algo de filosoficamente relevante.

Tradução de Samuel Titan Jr.

Texto Anterior: O intercessor entre os deuses e os mortais
Próximo Texto: Heróis dos EUA dependem de inimigos para sobreviver
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.