São Paulo, domingo, 6 de outubro de 1996
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A razão não é propriedade privada

ALAN SOKAL

A Folha de 22/9 trouxe artigo de Roberto Campos sobre uma "brincadeira" de minha autoria no qual o autor expõe -como é seu direito- sua análise do caso e de seu significado político. No entanto, em seu zelo de interpretar a controvérsia decorrente numa camisa-de-força de esquerda/direita, Campos distorceu os meus motivos políticos -claramente declarados, aliás-, recrutando-me contra a minha vontade para sua cruzada ideológica direitista.
A história é conhecida. Submeti à "Social Text", revista norte-americana de crítica cultural identificada com a "esquerda pós-modernista", um artigo paródico no qual afirmava que a "ciência pós-moderna" aboliria o conceito de realidade objetiva e, desse modo, sustentaria intelectualmente o "projeto político progressista".
O artigo foi preenchido de citações perfeitamente genuínas de proeminentes intelectuais norte-americanos e franceses -Stanley Aronowitz, Sandra Harding, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jacques Lacan, Gilles Deleuze e dúzias de outros- escrevendo bobagens sobre a matemática e a física, tudo acompanhado de blandícias rasgadas.
Os editores da "Social Text" aceitaram e publicaram o artigo, sem perceber que se tratava de uma paródia. Logo depois, revelei a "brincadeira" em outra revista, "Lingua Franca", em que expliquei os meus motivos intelectuais e políticos.
A "confissão" desencadeou uma torrente de reportagens na mídia do mundo anglo-saxão e de outros países. Os temas subjacentes têm se tornado objeto de inúmeros debates nos círculos universitários norte-americanos.
Segundo Roberto Campos, o caso demonstraria a falência intelectual da esquerda, reduzida à "parolagem e às pretensões intelectuais". Mas será que é mesmo assim? Embora o pobre leitor do artigo de Campos não o suspeitasse jamais, eu pertenço à esquerda -entendida amplamente como corrente política que condena as injustiças e as desigualdades do sistema capitalista e que procura eliminá-las, ou pelo menos minimizá-las.
Sem dúvida, a esquerda mundial está passando por uma crise intelectual e estratégica, provocada não tanto pelo colapso do comunismo -sistema opressivo que a esquerda democrática sempre condenou-, mas pela crescente globalização do capital e a consequente dificuldade de sujeitá-lo a controle democrático.
Foi nesse contexto que escrevi a paródia: não com a intenção de ridicularizar a esquerda, mas de fortalecê-la por meio da crítica de seus excessos.
Pois excessos têm sido cometidos, sobretudo nos Estados Unidos, onde a esquerda sempre foi marginal e marginalizada, excluída da responsabilidade cotidiana de elaborar um programa político, de defendê-lo e, eventualmente, de implementá-lo.
Nessa situação de impotência, exacerbada nos anos 80 e 90, a esquerda norte-americana se fragmentou. Reduzimo-nos a uma coleção de lutas setoriais -negros, latinos, mulheres, gays, operários-, todas valorosas, mas sem ligação estratégica entre si.
Pior, uma parte da esquerda intelectual fechou-se no ambiente universitário, em que as lutas intestinas da profissão substituíram a verdadeira política: na frase memorável do sociólogo Todd Gitlin, "marcharam sobre a Faculdade de Letras enquanto a direita tomava a Casa Branca".
Foi num meio acadêmico cada vez mais voltado para si próprio que, com base em idéias originalmente frutíferas e libertadoras -feminismo e multiculturalismo, por exemplo-, se construiu um novo escolasticismo, representado especialmente pela corrente pós-moderna. Esta, porém, nunca constituiu a totalidade, nem mesmo a maioria, da "esquerda acadêmica".
Para cada artigo sobre a transgressividade sexual de Madonna, publicaram-se cinco analisando rigorosamente a desigualdade salarial entre mulheres e homens. Para cada livro escrito em incompreensível jargão desconstrucionista, editaram-se dez de fascinante história social.
Por esse motivo, a reação à minha "brincadeira" nos meios esquerdistas norte-americanos foi bem o contrário do que Roberto Campos -cegado por seus preconceitos e imaginando "patrulhadores" do politicamente correto atrás de cada esquina- faz crer. Com exceção daqueles mais diretamente afetados -aqueles apanhados com as calças nas mãos-, a vasta maioria da esquerda intelectual norte-americana apoiou minha intervenção.
Assim, por exemplo, escrevendo em "The Nation", a cronista Katha Pollitt opinou que "essa demonstração do alto coeficiente de vazio nos estudos culturais -o modo como combina a submissão disfarçada à autoridade com o mais alucinado radicalismo de fachada- é mais do que oportuna".
A historiadora Ruth Rosen considerou que "a paródia de Sokal desvendou a hipocrisia praticada por esses pretensos revolucionários culturais. Afirmam querer democratizar o pensamento, mas escrevem propositalmente num jargão exclusivo para uma elite de iniciados. Pretendem que sua obra seria transformativa e subversiva, mas permanecem obsessivamente focados na construção social e linguística da percepção humana, não na dura realidade da vida das pessoas".
A revista esquerdista "In These Times" editorializou que "a relação entre esses esquerdistas acadêmicos e a sociedade norte-americana se assemelha cada vez mais àquela dos monges clausurados falando e escrevendo para si mesmos em latim. Ao contrário da vociferação conservadora contra a subversão marxista das universidades, o trabalho desses acadêmicos nada ameaça senão a possibilidade de renascimento de uma esquerda intelectualmente vigorosa".
Todos esses comentadores reconheceram a crise intelectual e estratégica da esquerda e insistiram na necessidade de enfrentá-la com um trabalho sério, baseado nos fatos, na ciência e na razão. Pois a razão e a honestidade intelectual não são propriedade privada nem da esquerda nem da direita.
Num passado não tão distante, as ditaduras militares, desde a Guatemala até a Terra do Fogo, torturavam e assassinavam em nome da "liberdade" (a liberdade do lucro, bem entendido). Hoje em dia, o Fundo Monetário Internacional organiza a redistribuição da riqueza dos pobres aos ricos, destruindo as economias do Terceiro Mundo em nome do "estabilizá-las". Os sacerdotes do Deus Mercado inventam belos encantamentos para disfarçar seus efeitos sobre os seres humanos.
Não foi por acaso que George Orwell, quem, mais do qualquer outro nesse século, desmascarou e condenou a desonestidade política, viesse de onde viesse, foi sempre um homem da esquerda.
A esquerda começa a reconhecer seus erros -que foram tantos- e a renovar-se intelectualmente. A direita terá a mesma coragem?

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