São Paulo, terça-feira, 8 de outubro de 1996
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O homem mais forte é o que está mais só

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O homem mais forte é o que está mais só", foi o que ele pensou, lembrando de "O Inimigo do Povo", de Ibsen (afinal, era um ex-intelectual desempregado). Pensara nisso para se consolar, porque estava numa ruim. Separado da mulher, sem programa, sem grana e no apartamento emprestado pela tia. A frase de Ibsen dava um pouco de dignidade a seu desamparo.
Sentiu-se uma vítima nobre do amor. E sorriu tristemente, depois de mais um dia terrível em que o patrão e os colegas desconsideraram seus mais finos anseios, depois de um engarrafamento pavoroso sob a chuva que crescia, depois do escuro tubo do elevador de serviço.
Então, ele correu para o único alívio que ainda tinha, depois que aquele vodu da mulher o abandonara, que era apertar um botão da TV e ver o apresentador do jornal da noite falando talvez da fome no Burundi, ou de algum excitante sequestro, ou de um grande desmoronamento, ou de colchões queimados nas prisões em revolta, ou de uma bela fraude nas eleições para prefeito, ou de uma infinita escrotidão burocrática que quanto pior mais o consolava.
As desgraças do mundo atenuavam as suas e ele podia ficar com a cabeça no travesseiro, numa doce anestesia que lhe apagava as humilhações do dia. Lá fora a chuva aumentava.
Apertou o botão, mas a TV não ligou. Só veio uma luz negra do fundo da tela e mais nada. Foi tomado pelo terror da solidão completa e começou a percorrer os canais que outrora floresciam naquela janela luminosa e amiga das noites dolorosas.
Os canais só emanavam uma luz esverdinhada, até que num número remoto ele ouviu ao longe um ruído parecido com vagas frases em italiano, uma espécie de Gugu Liberato vindo de Roma-kitsch (até o cafajestismo italiano o salvaria), mas tudo virou uma chuva negra em segundos. Mudou o canal e pensou ouvir uma voz distante falando de um furacão na Flórida. Por alguns segundos, ainda pensou nas ondas enormes destruindo Miami, mas talvez fosse só impressão.
Súbito, teve um lampejo e, com um grito de esperança, arrojou-se para o quarto da empregada em busca da 14 polegadas preto-e-branco. Mas se derreou ao ver o quarto vazio de TV, pois a Silvaneide tinha elevado o aparelho para divertir a mãe com dengue na enfermaria do Jacarezinho.
Voltou ofegante, rodou o dial e conseguiu outro lampejo tosco de imagem esgarçada, cor de fezes de bebê, sem som, em que um polvo comia um caranguejo que se torcia entre os tentáculos, e o polvo e o fundo do mar foram para ele uma fonte de poesia fugaz, e ele se imaginou em Bali, mas a turva imagem também se apagou para sempre.
Em pânico, ele correu à janela. A chuva tinha piorado; agora a torrente passava arrastando dois carrinhos e um homem de terno gritava, agarrado ao poste da avenida; as forças do homem estavam se esvaindo, mas ele, obstinado, voltou à TV; mas agora só lhe restava a tela fervente do "poltergeist" preto-e-branco, como um mar de luz envenenada.
Ele ainda tentou um pouco de imaginação e se pensou atravessando um espaço entre planetas e estrelas, onde, após a barreira sideral dos grãos ferventes de luz, chegaria finalmente ao Globum, o planeta platinado, ou mesmo ao reino mágico de Silvium Sanct e seu sumo sacerdote Jô. Nada; a chuva aumentava lá fora.
Pensou num livro, mas não havia nada em casa; há muito tempo não lia mais. Então pegou na gaveta o velho binóculo de corridas do pai morto, correu até a janela, esquadrinhou os detritos de lixo que a chuva entulhava na rua e viu de novo o homem de terno, que finalmente se largara do poste e estava em pé no teto de um fusca.
Aí, ele teve um momento de calma e, enquanto examinava a cena com o binóculo, sua voz surgiu grave: "Mais uma vez as chuvas vêm castigar a cidade indefesa, mostrando o descaso dos prefeitos com as galerias pluviais"; e sua voz parecia a de Cid Moreira, que ele imitava tão bem.
Então seu binóculo correu para as longínquas janelas de um edifício em frente e enquadrou um casal que rolava num sofá colorido se beijando com ardor na boca, e ele, solitário, dublou, com voz empostada de Herbert Richers: "Srta. Williams, a senhorita pode apostar que seu corpinho ainda é o melhor aqui de Alabama..." e assoviou o tema de amor de "Summer of 42", e seu binóculo voltou rápido em flash para o homem que ainda gritava no Volks sob a chuva, e ele declarou, solene: "Plantão cidade! Urgente! As vítimas da enchente continuam esquecidas pela defesa civil em total desamparo! É uma vergonha!!!".
E dali correu para a cozinha, já saltando, alegre, plim! plim! Sentiu-se num intervalo comercial, abriu vivamente a geladeira num corte colorido para os iogurtes variados na luz de publicidade e gritou: "Os novos Yofrutinhos vêm com polpa e tudo, como um pomarzinho em sua geladeira!".
E, de colher na boca, começou a sorver com delícia o yofrute-ameixa e olhou para o chão alvíssimo da cozinha, onde um rápido risco marrom se escondeu sob o fogão, um outro risco fugiu em direção à área de serviço e ele viu ali a possibilidade da aventura no mundo animal; então, seu pé, visto do alto, ameaçador, distorcido, desceu como um tufão de Deus sobre a barata que se esgueirava no cantinho da área, mas que foi logo alcançada por sua perícia de caçador.
Lá fora soava uma sirene de ambulância e os gritos do náufrago da avenida, mas o intervalo comercial ainda não acabara e ele, de Yofrutinho na mão, colher na boca, continuou como um selvagem vingador a destroçar as baratas que se debatiam na luz branca do desespero, esmagando corpos, antenas e perninhas, enquanto berrava eufórico: "Minha senhor, não aceite imitações! Nada de DDT, vá direto aos bichos escrotos com Kafka Plus, o mata-baratas, agora em fórmula potente e destruidora!".
As baratas agonizavam e ele pulava como um cossaco de balé russo no ladrilho, dando patadas rutilantes em todas as direções. E berrava: "Plim! Plim!" E logo correu com arrojo de repórter até a janela com o binóculo na mão e pôde dar mais um flash de notícias, comunicando à população que "o Plantão Cidade verifica que as águas começaram a baixar na avenida, deixando contudo uma dura tarefa para os garis amanhã". E finalmente ele pôde cair no sofá-cama de olhos fechados e dormir, com a moça da meteorologia deitada sobre ele, murmurando: "Tempo bom em todo o país, meu amor". Era feliz.

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