São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Os olhos da memória

ELIETE NEGREIROS

nos anos 20 e 30, a música popular era sinônimo de malandragem. Cantava e glorificava a figura do malandro, em contraponto à ideologia do trabalho, que a sociedade brasileira abraçava, em nome do desenvolvimento econômico. Apesar do charme e fascínio, a malandragem nem sempre era filha de uma filosofia de vida baseada no prazer e no ócio. É também uma tentativa de sobrevivência "à brasileira", num quadro social repleto de preconceitos. É deste quadro sem perspectiva que a figura do malandro se projeta em dimensão nacional, driblando a miséria com seu gingado e se tornando símbolo da cultura brasileira.
Desde a Semana de Arte Moderna de 1922, São Paulo passa para a vanguarda da produção cultural brasileira. O modernismo brasileiro e as culturas tradicionais trazidas pelos imigrantes formam a cultura popular urbana paulista. São Paulo ingressa na modernidade e se afirma como cidade do trabalho, que lhe dá um ritmo acelerado e "sui generis". Indústrias, chaminés, arranha-céus, grande número de migrantes, pressa, barulho, automóveis, trânsito, bares e restaurantes: isto vai formar o "ethos" do paulistano.
Nos anos 30, o rádio, ao lado do disco, transforma não só o sistema de comunicação brasileiro, mas também a vida das pessoas. A música popular brasileira ganha espaço e importância e passa a ser ouvida em todo o país.
Até a chegada da televisão, nos anos 50, o trinômio rádio-música-propaganda torna-se soberano como produto lúdico da sociedade brasileira, ao lado do futebol, que começa a se firmar como força popular. Programas de auditório, idolatria de cantores do rádio, sucesso de sambas e marchinhas, programas de calouros, marcam a época de ouro do rádio brasileiro e da música popular.
Intelectuais, boêmios e artistas continuam a se reunir no bar Ponto Chic. Trovadores urbanos vagueiam pela madrugada, cantando o amor para os namorados. Canções românticas e saudosistas nos falam da velha cidade. Ao mesmo tempo, compositores populares cantam a nova São Paulo.
Em "Ronda", de Paulo Vanzolini, a ação se passa na noite paulistana, na avenida São João que, naquele momento, é ponto de encontro de boêmios, solitários e apaixonados. Vanzolini retrata o drama dos desencontros amorosos na cidade grande: o rosto único e procurado do ser amado se perde na vida noturna, agitada e anônima.
Da grande migração para São Paulo (anos 30 e 40), parte constituirá a nova força de trabalho da cidade industrial e parte será completamente marginalizada do processo de produção, vivendo em condições de miséria. Surge o mundo do subemprego, dos camelôs da praça da Sé e do poeta-engraxate, figura de destaque da cultura popular urbana paulistana, um subempregado que circulava na região do centro e que, quando não estava engraxando sapatos, transformava seus instrumentos de trabalho em instrumentos musicais, denunciando sua situação de miséria, exclusão e contínua perseguição pela polícia: "Mas como é triste esse tal de pega-pega/ Prá salvar minha caixinha/ Corri quase duas léguas" ("Pega-pega", de José Pereira).
No centro, os diversos segmentos da nova metrópole se interceptam: a cultura popular urbana aí se manifesta quer pela arte dos artistas de rua, quer pelo encontro de boêmios, intelectuais e artistas nos bares.
A partir dos anos 50, o espaço urbano da paulicéia se torna ainda mais caótico. O problema da habitação se agrava. Cortiços se espalham pela cidade de modo progressivo e assustador, e a temática social passa a ocupar um lugar especial na canção brasileira. No interior do movimento bossa-nova, há um grupo de compositores -o grupo dos engajados- que se expressa politicamente. A teoria da dependência entra em voga no meio universitário e intelectual. O marxismo ganha força como ciência e ideologia. Teóricos de esquerda repensam o país com novas análises da realidade brasileira. Juscelino Kubitschek acelera o processo de industrialização e abre as portas para o capital estrangeiro.
Neste novo contexto, Adoniran Barbosa retrata a transformação do cotidiano das pessoas e da cidade, em canções como "Saudosa Maloca", na qual o trinômio construção-demolição-construção é o destaque.
A nova cidade apressada, polivalente e em constante transformação, parece querer perder a memória. Neste instante, cantar é lembrar, não esquecer. O velho centro se transfigura e perde seu status de lugar sofisticado e reduto de artistas, intelectuais e boêmios. Forma-se um novo centro, cujo eixo é a avenida Paulista, e para lá se transferem a burguesia e a classe média, propiciando o aparecimento de uma nova área de recreação e cultura.
O velho centro passa a ser frequentado pelo proletariado e pelos baixos estratos da classe média. Destas novas relações cotidianas, outras formas culturais emergem, como o cinema pornográfico e os cine-teatros. Nesse quadro, nada melhor do que a canção de Tom Zé, "São São Paulo", para apresentar, numa série de flashes fotográficos, a imagem múltipla e desafiadora da nova cidade. Grupos de roqueiros aparecem em toda parte, com idéias, sonoridades e comportamentos peculiares.
Com a velocidade da transformação da cidade, a memória se fragiliza e a cultura emerge como lembrança, como re-conhecimento, como possibilidade de não-esquecimento.
A cultura desperta a memória e, então, podemos perceber a transfiguração do real e a nossa própria transfiguração.
Sob o signo do múltiplo, a cidade busca sua identidade -perdida?- num espelho onde suas mil faces se multiplicam indefinidamente. Quem sabe sua face não seja apenas esse desejo pulsante de unidade?
A cidade se perde num labirinto de arranha-céus e dissonâncias e se esquece de si, por alguns momentos. Os olhos da memória se abrem. Ela se reconhece, se lembra.
Nesta busca de re-conhecimento, de não-esquecimento, o percurso imagístico e sonoro que Waldenyr traça é nosso aliado.

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