São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Os mundos de Deleuze

OSWALDO GIACÓIA JR.

nesta edição dos "Cadernos de Subjetividade", movemo-nos por circuitos e ligações múltiplas, que procuram apreender a totalidade do pensamento de Deleuze, abrangê-lo em suas múltiplas vertentes, dobras e perspectivas. A intenção é exprimir sua mais genuína inflexão, começando pelas obras de caráter especulativo-filosófico, passando pelas interfaces transdisciplinares de seu trabalho (por exemplo, o aspecto prático de sua filosofia, seus desdobramentos éticos e políticos) e não ignorando o âmbito próprio, até mesmo íntimo e secreto, de suas amizades e relacionamentos.
Chamam a atenção, nesse número, dois textos de Deleuze, inéditos em português. Primeiramente, suas notas confidencialmente entregues a François Ewald, para serem retransmitidas a Michel Foucault -apontamentos que registram, de maneira clara e precisa o posicionamento do autor de "Diferença e Repetição" relativamente às principais categorias teóricas e ao desdobramento das pesquisas de Foucault. Em seguida, a entrevista a Didier Eribon, o biógrafo do pensador da "História da Loucura": nela encontramos o esclarecimento de sua postura face ao gesto de escrever e a seu sentido, e o reconhecimento de seu débito intelectual para com Sartre, Canguilhem e Marx.
Uma vez que a coletânea tem a pretensão de captar, no autor, a vida do pensamento "in actu", nela se encontram combinadas a memória intimista das relações de Deleuze e as apreciações de conjunto de sua obra filosófica. Extratos disso são encontrados em reminiscências de sua participação nos episódios de maio de 1968, de sua atuação em sala de aula, reuniões de trabalho e grupos de estudos, seguidas por trabalhos analíticos que procuram, algumas vezes, traçar a gênese das concepções originais de seus trabalhos especulativos a partir da exegese dos textos histórico-monográficos sobre Bergson, Spinosa, Nietzsche ou Kant.
Esse esforço hermenêutico convive harmonicamente com análises das relações de Deleuze com a história da filosofia, de seu modo singular, quase antropofágico, de apropriar-se dela para construir seus próprios conceitos e problemas, numa ruminação que conduz, por exemplo, às posturas centrais de "O Que É Filosofia?", escrito quando é chegado o momento de "falar concretamente"; ou com a tentativa de demarcar o que nietzschianamente se poderia denominar o "proprium et ipssissimum" do pensamento deleuziano ("De máscara em máscara, de livro em livro, seu pensamento nunca deixou de perseguir com persistência e força bastante raras algumas questões-chave: como inventar os meios para se pensar movimentos e acontecimentos? Como apreender o que se mexe, gera, foge, devém, inventa, desliza, surge?")
De quando em vez nos deparamos com tentativas de sistematização do pensamento de Deleuze e com esforços para explicitar alguns de seus conceitos-chave -plano de imanência, campo transcendental, desterritorialização, linhas de fuga, processos de subjetivação etc., assim como com as tentativas de exposição da dimensão prática de sua filosofia.
A seção intitulada "Os Mundos de Deleuze" é um exemplo da riqueza dos agenciamentos teóricos que podem ser operados a partir de sua obra, com seus trasbordamentos para os domínios tanto das artes como das ciências e da política, numa revelação de quão acurada é a intuição de que nosso século é genuinamente deleuziano, uma vez que seu pensamento enuncia, de modo inequívoco, o "diagnóstico multissensível de nossos devires atuais".
A coletânea não declina da reflexão sobre a repercussão mundial da obra de Deleuze, o que inclui uma parte dedicada a sua recepção no Brasil. Antes de concluir, com a seção "Ninguém é Deleuziano", os organizadores enfrentam a penosa travessia do necrológio: em "A Morte", abre-se espaço de acolhimento para as diversas manifestações que procuraram alcançar a significação filosófica do legado dessa morte e preencher reflexivamente o vazio da separação.
Subvertendo -mesmo na morte- os códigos e protocolos oficiais, o necrológio do pensador das intensidades expressivas, da diferença e do desejo criador não poderia deixar de fazê-lo, ainda uma vez, "retornar de entre os mortos para abrir, escrevendo, um pouco mais de vida"; de efetuar uma derradeira afirmação artística da vida, uma espécie de "réquiem" e celebração da vida filosófica em seu exercício rigoroso, obstinado e tragicamente coerente. O leitor percebe, nas diversas malhas que compõem a rede desse tributo, o sensível fio de Ariadne da gratidão, da ternura e da amizade. "Mas, em filosofia, a amizade é a 'Stimmung' daquele que pode beneficiar-se da generosidade de um pensador que não cessa de distribuir indícios, pistas, instrumentos para a livre reflexão daqueles que tiveram a sorte de ouvi-lo ou percorrer seus escritos".

Oswaldo Giacóia Junior é professor de filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp).

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