São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O plural do eu

OLGÁRIA C. F. MATOS

"Tudo é um, tudo é diverso. Quantas naturezas na do homem." Pascal a o proceder à genealogia do conceito de "sincretismo", Massimo Canevacci o associa a uma "exploração das hibridações culturais", sem o caráter que lhe conferiu o âmbito religioso. "A origem da palavra deixa algo de enigmático e de alusivo (...). Dizia-se, de fato, que os cretenses, sempre dispostos a uma briga entre si, se aliavam quando um inimigo externo aparecia. Sincretismo é a união dos cretenses. Um conceito defensivo (...) que ultrapassa a fragmentação política interna (...). Essa determinação de unir grupos conflituais, essa busca por alianças entre diversas 'partes' da própria Creta, serviu para a posterior migração do conceito: da política à religião."
"Sincretismo" condensa, para o autor, uma metodologia. Não por acaso, esta se faz na referência a Adorno e Benjamin, por uma dialética que é negativa, por "imagens em constelações". O que significa tratar a comunicação visual, por exemplo, não em conteúdos consagrados, mas a partir de um "pensar-em-contradição". Tal como Adorno, Massimo indica um plano diferente daquele que se engaja numa "verdade essencial", espécie de identidade eleata, garantida pela referência a uma origem sedentária. Com isto, contraria a fórmula tradicional da "adequatio". A omissão da síntese dialética abre-se para a polivalência das significações, para uma hermenêutica do "eu" como experiência do pensamento. Desobedecendo a univocidade lógica, amplia as latências do dizer.
Desta preocupação teórica, resultam consequências políticas, pois ela atesta a crise das aculturações violentas e corsárias: "O sincretismo não é um ecletismo sem conceito ou um pragmatismo sem escrúpulos. Note-se seu parentesco com o 'oxímoro'. Uma loucura ('oxy') da linguagem que coloca em desordem as fronteiras das palavras para dar novos sentidos às coisas". Oxímoros e sincretismos provêm de lógicas "ilegítimas" e sem "coerência", transitando em assimetrias, contagiando significações instituídas, desviando-se de universalismos intolerantes, indigenizando mutações culturais: "Quando sincretismo se torna algo sintético, significa que o processo histórico-cultural (mas também político) de que era portador inverteu-se em seu contrário, legitimado como objeto dócil". Disciplinado numa síntese, o heterogêneo recai na uniformidade homogênea, que tudo reconverte à dimensão do mesmo: o Sujeito soberano.
De "De Chirico" a "Antes da Chuva", de Manchevski, do "Videoscape" ao "Choro Bororo", Massimo Canevacci interroga os entecruzamentos que formam uma rede de impossível desembaraçamento, mantendo o passado em sua dispersão, procurando demarcar os ínfimos desvios e mesmo completas reversões que lhes deram nascimento. "A sucessão de fatos", anota, "não é fixa, pode mudar também no passado. O tempo não pára e se move em todas as direções. Como se fosse o espaço. O pensamento, que presume ter encontrado a verdade, é falso justamente por subtender a pacificação entre conceito e coisa". Colocando o Eu em "estado de questão", o método se dá a plena liberdade de contradizer-se, já que a insularidade do Eu não responde à "realidade do real".
Eu, neste livro, é antes de tudo enigma a ser decifrado: "O sujeito que pesquisa deve acostumar-se a pensar que o plural do 'eu' nem sempre é o 'nós' das comunidades ou dos 'coletivos'. O plural referido a um único sujeito revela não haver um só modo de pensar, sentir, acionar um objeto ou modelo cultural. Multiplicar as subjetividades do pesquisador significa que emoção e razão, poética e cientificidade não se confundem, mas se dilaceram, diferenciam-se, acrescentam-se". É por não ser nunca idêntica a si mesma, que a identidade se apresenta na grande metáfora da viagem -deslocamento no espaço e no tempo, referida ao território interno do próprio viajante; nela arriscamos nossa própria transformação.
É nos desvãos de nossa identidade precária, mostra Massimo, que os sincretismos são possíveis, assim como o difícil e doloroso contato com esse outro de nós mesmos, que a diversidade de homens, experiências e culturas traz. Antropólogo à sua maneira, Montaigne em seus "Ensaios" escreveu: "Todo homem traz consigo a inteira humana condição".

Olgária Chaim Féres Matos é professora do departamento de filosofia da USP e autora, entre outros, de "Os Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense).

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