São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Novos padrões de rigor

JOSÉ JEREMIAS

o estudo da natureza da ciência tem ocupado a atenção de filósofos e cientistas, concentrando-se ora no processo de investigação, ora nos produtos da atividade científica. Neste final de século, as reconstruções metodológicas e teorias da ciência tornaram-se mais cuidadosas com a complexidade do seu objeto e com a escolha de conceitos e argumentos, de origem científica ou filosófica, usados pela metaciência. Os debates têm sido intensos e nenhuma das correntes da metodologia contemporânea detém hegemonia. Embora o pluralismo pareça instaurado, novos padrões de rigor, mais situados e menos pretensamente universais que aqueles do empirismo lógico, estão se impondo, como as obras de Klimovsky e Omnès fartamente demonstram.
Aos 72 anos, Klimovsky edita seu curso de metodologia como professor da Universidade de Buenos Aires e um dos pioneiros desta disciplina na América Latina. Os capítulos iniciais de seu sofisticado manual de metodologia preparam progressivamente os leitores, mediante informações lógicas, semânticas, epistemológicas e distinções conceituais básicas da filosofia da ciência, para o roteiro dos capítulos dedicados à natureza das teorias -em que as concepções axiomática e não-axiomática são expostas com rigor e simplicidade-, à questão da base empírica e dos procedimentos de teste e às divergências entre verificacionistas e refutacionistas.
O caráter sistemático do tratado não impede que Klimovsky facilite a leitura por meio de numerosos exemplos matemáticos, físicos, biológicos e até sociológicos e psicanalíticos. Experiente expositor, Klimovsky participa ativamente dos debates entre diferentes posições filosóficas. Ao tratar da natureza das explicações científicas, frente ao empirismo lógico, opta pelo racionalismo crítico de Popper, adotando o modelo hipotético-dedutivo de explicação e discutindo a natureza das leis, sem evitar temas complexos, mesmo para especialistas, como o estatuto da probabilidade e os problemas dos termos teóricos e dos experimentos cruciais. As epistemologias de Kuhn e Feyerabend, alternativas ao empirismo lógico e ao racionalismo crítico, são discutidas com cuidado e tolerância nos capítulos finais da obra, em que comparecem rapidamente -matéria para o próximo livro talvez- Bachelard, Piaget e Althusser.
Roland Omnès, físico teórico consagrado da Universidade de Paris, não é tão generoso com a metodologia dos filósofos, embora seu próprio livro termine com reflexões extremamente abstratas e programáticas, em que ele arrisca elementos para uma nova teoria do conhecimento científico, mais adequada, a seu ver, aos avanços da ciência e a seu desenvolvimento histórico em interação e conflito com o senso comum e a linguagem corrente. Estudando a longa ascensão formal das ciências, mediante exemplos bem escolhidos da lógica, da matemática e da física (em especial, o caso da física quântica e seus problemas epistemológicos), Omnès traça um amplo painel das dificuldades que os filósofos tiveram em acompanhar esse processo, resultando daí teorias da ciência totalmente, ou em muitos aspectos, inadequadas. Com estilo ensaístico leve e agradável, Omnès não poupa nenhum dos grandes filósofos, mas é tolerante com as reflexões metodológicas dos cientistas, que frequentemente não reconstroem com sucesso as novidades e avanços dos seus procedimentos cognitivos de investigação.
Segundo Omnès, a ciência é uma representação que utiliza a coerência e a consistência como sua qualidade mais forte. Na ciência, o mundo apresenta-se mediante uma malha de regras ou leis de três tipos: 1) as regras empíricas, que são as experiências repetitivas que "tecem nossa representação visual e a nossa linguagem"; 2) os princípios universais, que dão natureza preditiva às investigações científicas; e 3) as leis, que são "consequências particulares que se podem deduzir dos princípios e se aplicam a categorias específicas de fenômenos". A ciência está em permanente transformação pelo surgimento de novas representações que provêm de novos princípios, de revisões que transformam princípios em leis e do aparecimento de princípios de nível superior, sofisticando a sua estrutura formal e matemática por onde se "apresenta a tutela constante do Real". A marcha na direção de um grau superior de universalidade e as revoluções -contrariamente ao que pensa Kuhn- ocorrem dentro do marco evolutivo da irrupção do formal e do avanço da coerência científica.
Em vários momentos, Omnès revela simpatia pelo falibilismo e o refutacionismo popperianos, embora insista em usar expressões verificacionistas que um racionalista crítico normalmente abomina. São propostos quatro métodos, que não são considerados incompatíveis com a concepção popperiana, embora, em seu nível de generalidade, estejam longe do conjunto das regras metodológicas de Popper. Klimovsky, por sua vez, analisa, adota e adapta criticamente a postura popperiana, no que é influenciado por Lakatos e filósofos da ciência pós-críticos.
Os quatro métodos de Omnès resumem sua concepção metacientífica: 1) o estágio da observação de fatos, catalogação de dados e constatação de regras de regularidade empírica (Tycho Brahé e Galileu), a ciência ainda sem um corpo de conhecimento que caracterize maturidade e sujeição a critérios de coerência; 2) o método da conceituação, da elaboração e seleção de conceitos "adequados a uma representação do Real"; 3) a elaboração regida pela lógica, que "consiste em enumerar todas as consequências possíveis dos princípios", o que exige esforço e imaginação (por exemplo, a elaboração matemática na física); 4) a verificação, em que se salienta (citando Popper) o caráter hipotético das teorias. E, ao contrário de Klimovsky, que busca incorporar as ciências sociais de modo positivo em suas reflexões metodológicas, Omnès desconfia, usando o estruturalismo de Lévi-Strauss como exemplo, que (bem-sucedidas nas três etapas iniciais) não cumpram a quarta condição, a da refutabilidade empírica.
O estudo cuidadoso do tratado de epistemologia científica de Gregorio Klimovsky, atualizado até os anos 70, e um dos melhores textos da área, poderá servir de antídoto às ligeiras, pretensiosas e imaginativas inovações do historicamente bem ilustrado físico francês Roland Omnès.

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