São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O homem reduzido

ARTHUR NESTROVSKI

entre as várias cenas de cemitério espalhadas pela obra de Philip Roth, uma chama a atenção em especial para um leitor de seu novo romance, "Sabbath's Theater". Vinte e nove anos antes de nos apresentar o sexagenário artista de fantoches aposentado Mickey Sabbath (Sabá) se masturbando, inesquecivelmente, sobre a tumba de sua amante croata, Roth ainda podia abrir um romance com outro senhor, bem-comportado, em visita ao túmulo da filha e da neta: "Nem rico, nem famoso, nem poderoso, nem mesmo feliz, mas civilizado -era esse o seu sonho de vida" ("When She Was Good"). Sabá compartilha as três primeiras indiferenças; mas jamais trocaria sua idéia de felicidade por um sonho de vida digna, e demonstra exemplarmente, ao longo do livro, o valor da resistência à civilidade como forma de ascensão moral. É uma educação pela afronta, auto-imposta por este "professor de estranhamento" -a maior criação, talvez, do autor de Portnoy e Zuckerman.
A afronta, no caso, é primariamente sexual. Sabá é um homem reduzido, "como se fala da redução de um molho, que vai cozinhando no fogo para concentrar sua essência e ser mais desafiadoramente ele mesmo". Ele é o Monge da Foda, o Evangelista da Fornicação, e infinitamente vigoroso em seus exercícios de exuberância. "A maioria dos homens têm de encaixar as trepadas em intervalos do que eles definem como ocupações mais importantes: ganhar dinheiro, poder, política, moda, sabe-se lá o que mais -futebol. Mas Sabá simplificara a vida e ajustara tudo ao redor de trepar."
A 60 anos do "Trópico de Câncer", e quase 30 do "Complexo de Portnoy", não é nada fácil quebrar recordes de obscenidade, mas comparada ao "Teatro de Sabá" a literatura erótica da atualidade ainda parece tímida. Se Roth tem traços que o ligam familiarmente a Henry Miller, tem muito mais para situá-lo na linhagem dos profetas judeus Kafka e Freud, temperados pela leitura de Céline e Joyce (este último homenageado diversas vezes no livro). Neste contexto tão elevado, de uma literatura em estado de incandescência, ou indignação quase constante, até Updike, que rivaliza com Roth como mestre supremo da língua americana e cronista das ambições sexuais, começa a soar um pouco como o bom burguês.
Acusado de assédio sexual e expulso da faculdade onde dava aulas, artrítico, gordo, trapaceiro, sujo e mal-vestido, Sabá continua implacável com o escamoteamento das anarquias. A energia vocabular desse homem não tem limites e é impossível resistir às suas façanhas de argumentação. Em seus monólogos e diatribes, o que se assiste é uma verdadeira devastação de adjetivos, cuja força parece se multiplicar na incongruência. Seu único rival é o próprio Roth, o professor do desejo, que se desdobra no duplo, mas permanece um passo além de sua criatura.
Mesmo o leitor viajado deve sentir que coisas assim jamais foram escritas; e uma das perguntas que o livro sugere é até que ponto se pode escrever o sexo. Quem senão Roth seria capaz de redigir a fatídica conversa telefônica entre Sabá e uma de suas alunas, verdadeira iniciação nos mistérios eróticos da voz? Quem mais poderia escrever a espetacular masturbação de sua mulher, que Sabá reencontra proustianamente nos braços de uma de suas ex-namoradas? E o que dizer dos inúmeros encontros entre Sabá e sua amante quinquagenária Drenka, capaz de se satisfazer com quatro homens no mesmo dia, excluindo Sabá, e que mantém com ele uma relação, se pode dizer, de total entrega e pureza? Para não falar dos encontros a três, de espetaculares trocas de líquidos de todos os tipos, da tentativa de sedução da mulher de seu melhor amigo, das liberdades que toma com a lingerie da filha do mesmo amigo e dos saudosos romances com as prostitutas dos portos de Santos e Buenos Aires.
Na sequência de "Operação Shylock" (1993), outra grande comédia séria, "O Teatro de Sabá" é um livro ainda mais ferozmente engraçado, de um humor no limite do terrível, onde o significado desaba em desespero. Sabá faz referências ao Falstaff de Shakespeare e parece, como ele, apresentar-se para recolher os insultos do mundo e responder dobrado em malícia. Mas também sustenta uma carga enorme de dor e revolta, muito diversa da sabedoria daquele outro sedutor da juventude. "Com seus interesses e sua fluência rabelaisianos, suas fontes profundas de obscenidade, seu senso do sofrimento e da morte como aberrações inaceitáveis, embora inevitáveis, roubando a chance de uma possível e enorme felicidade, Roth está bem equipado para seu grande tema", escreveu Frank Kermode, num ensaio elogioso sobre o livro (1). Integridade, identidade, sexo, morte, teatro: são todos elementos do grande tema, que tem precedentes na "Bíblia" hebraica e no "Paraíso Perdido".
É um desafio considerável para o crítico recuperar a vitalidade de Sabá, um misto de desbragamento carnal, selvageria moral e melancólica consciência das perdas. Tudo, ou quase tudo parece perdido para ele: não só Drenka, já morta no início do livro; mas também Nikki, sua primeira mulher, desaparecida, que Sabá às vezes pensa ter assassinado; sua mãe, que retorna dos mortos para conversar com ele; o idolatrado irmão mais velho, morto em combate, e até hoje objeto de culto; ele mesmo, Sabá, perdido nas vagarias da idade, resistindo à doença, ao isolamento, à pobreza e à ameaça de impotência; e, afinal, o próprio sexo: "A noite vai caindo e o sexo, nosso maior luxo, se afasta numa velocidade impressionante, tudo se afasta numa velocidade impressionante, e a gente se questiona sobre a loucura de ter desprezado uma única triste trepada".
"Tudo fica para trás", pensa ele, a caminho de um dos enterros que, em conjunto, fazem do livro um sucessor digno do capítulo 6 de "Ulysses", "tudo se vai, começando com você mesmo e nalgum ponto indefinível você começa a se dar conta de que o seu antagonista mais duro é você mesmo". Em frases como essa, que vão se acumulando da metade para o fim, o romance ganha outros timbres, muito diferentes da malícia brilhante e do ultraje, que marcam a princípio a figura de Sabá. O livro todo está no limite diabólico da graça; mas do lado de lá, muito além do registro habitual das nossas comédias e tragédias da consciência dividida.
É o adultério a condição amorosa por excelência para esse homem "preso num processo nada piedoso de autodivisão" e cujas ambivalências se multiplicam nos espelhos da autoria literária e da condição de judeu. A trilogia de Zuckerman e "Operação Shylock" são estudos definitivos dessas outras duas aberrações, mas o "Teatro de Sabá" tem também sua esplêndida dose de desfaçatez auto-irônica, suficiente, por certo, para recolher as censuras da crítica normativa judaica.
O acesso sexual representa para Sabá a única via de integração humana; mas naturalmente não garante a sua sustentação. Nenhuma outra tentativa, porém, nenhum esforço de reintegração pessoal chega a ter sucesso, como ele bem sabe. "Quanto ao 'padrão' que rege as nossas vidas... chama-se habitualmente caos", comenta ele, e insiste: "Na minha experiência, a vida se dirige para a incoerência". Noutro momento, em discurso indireto livre, o narrador ou seu duplo tem a visão de si como "um caixão que guiamos interminavelmente pela escuridão sem quadrante, contando e recontando os eventos incontroláveis que nos induziram à transformação numa pessoa imprevista".
Nenhuma teoria do caos pode dar conta dessa desordem humana; nenhuma empatia ou amizade pode ajudar a interromper a queda livre de Sabá. Mas sua agressividade heróica encontra um contrapeso no "realismo" de um velho amigo bem sucedido, que de sua parte tem a coragem de suportar as frustrações de uma boa vida sem exuberância. Sabá está pronto para seduzir a mulher do amigo; mas é ela quem resume o caráter dolorosamente caricato desse Lear sem coroa e sem filhas: "emoções primárias, linguagem indecente e sentenças complexas muito bem ordenadas".
A referência a Lear não é casual. Shakespeare vigia, nas entrelinhas, boa parte do que há de mais forte no livro, incluindo uma grande cena no metrô, com Sabá recitando um trecho da peça. Nalgum sentido inapreensível, em certos momentos Philip Roth parece ter tido acesso às fontes secretas da sabedoria shakespeariana. Como Shakespeare, também ele faz ressoar a fúria de Isaías, "a maior de todas as vozes da 'Bíblia'... o desejo insano de destruir todas as coisas! O desejo insano de salvar tudo! (...) a voz de alguém que perdeu a razão!". A maior de todas as vozes na literatura judaica moderna também é a voz de um louco, erotomaníaco e suicida, urrando no deserto, mas capaz de fazer qualquer um ser maior do que é.
Em seu ensaio sobre "A Psicologia do Witz e do Cômico" (1911), Sándor Ferenczi define o auge do humor como "humor negro, ou macabro: quem for capaz disso, nem mesmo a proximidade da morte pode abater ao ponto de não rir ou sorrir de sua situação" (2). Não sei se é possível chamar de macabro o humor de Sabá, em pleno cemitério judeu de Nova Jersey, recitando as intermináveis e invariáveis inscrições das lápides, enquanto procura o túmulo do irmão e dos pais, e aproveita para escolher um para si. A lista absurda cai nos ouvidos como a terra da pá do coveiro, mas neste ponto o desespero e a insanidade de Sabá já o transportaram para além do macabro e do humor. Ele está nas fronteiras do impensável e leva Roth ao limite da literatura.
Essa proximidade, ou interferência, entre narrador e personagem é característica de praticamente toda a obra de Roth e confere a Sabá, no caso, um status especial. Pode-se dizer dele, guardadas as suas idiossincrasias, o mesmo que Roth escreveu sobre as figuras da última fase de Kafka: "São retratos do artista, em toda sua engenhosidade, angústia, isolamento, insatisfação, implacabilidade, obsessão, resguardo, paranóia e autocentramento, retratos de um pensador mágico no último limite..." ("Reading Myself and Others").
Num dos poucos diálogos que não é nem diretamente erótico, nem conduzido em termos de guerra mental, Sabá concede um ponto ao espírito do "Eclesiastes", de que "a vida é uma futilidade, uma experiência profundamente aterradora, e a única coisa realmente séria é a leitura". As ironias são sempre difíceis de desemaranhar num texto tão expansivamente a favor da experiência. Entre tantas perdas que vão compondo o luto de Sabá, nenhuma é mais insistente do que a perda do instante, de cada momento caoticamente arremessado ao passado. Um livro também, se abre e se fecha, mas resta o objeto precioso de luto, uma visão da possível e enorme felicidade, que ressoa do mundo dos mortos na mente dos vivos.
A grandiloquência pode não ser a retórica mais adequada da crítica, mas há certas ocasiões em que a prudência é muito menor que o entusiasmo; e, neste caso, tenho o precedente de Sir Frank Kermode, o que me deixa um pouco mais à vontade. Na hora apropriada, nenhum de nós vai estar mais aqui para saber se eu estava errado, mas eu me admiraria muito se "O Teatro de Sabá" não fosse reconhecido, desde agora e para sempre, como um grande romance, um dos grandes romances do nosso fim de século.

Notas:
1. "Howl". New York Review of Books, vol. 42, nº 18, november, 16, 1995, págs. 20-23.
2. S. Ferenczi, "Obras Completas", vol. 1. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo, Martins Fontes, 1991, pág. 133.

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