São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Radicalismo e tradição

MILTON LAHUERTA

num contexto em que as chamadas utopias se esboroaram e os partidos, mesmo os de esquerda, tornaram-se "administradores de crises", como qualificar uma política radical? Que relação pode haver entre o radicalismo político e a díade esquerda e direita? Que valores devem nortear uma teoria crítica da modernidade tardia num mundo globalizado que, quase por definição, considera anacrônica qualquer afirmação de valores universais?
É justamente a essas perguntas que o sociólogo inglês Anthony Giddens procura responder neste livro que, sem nenhum favor, é de extrema originalidade e ousadia. Já no título e no índice, revela-se a preocupação de romper com dicotomias e ângulos de análise consagrados. No entanto, a ousadia e originalidade de Giddens vão bem além, manifestando-se também no plano conceitual e político.
No sentido anglo-saxônico, política radical é sinônimo de estar à esquerda e em oposição ao conservadorismo. Além disso, pelo menos desde o século 19, o radicalismo é identificado não só com a adesão à mudança, mas com a certeza de que é possível controlá-la racionalmente pelo conhecimento. Pois é justamente tal pretensão que parece viver o seu ocaso. E não porque a possibilidade de transformação tenha se esgotado, mas por vivermos sob a égide de uma mudança interminável, perturbadora, destrutiva e fora de controle.
Admitindo-se que o mundo não está sujeito ao controle humano, é preciso compreender que as fontes e a abrangência do risco mudaram de modo substancial, gerando uma "incerteza artificial", cuja raiz se encontra na intromissão consciente na história e nas intervenções na natureza. Ou seja, a influência humana nos processos de mudança é monumental, só que o controle de longo alcance é cada vez menor, generalizando a propagação de um tipo de "risco artificial", de consequências desconhecidas e incalculáveis. O futuro torna-se assim mais aberto, problematizando a relação entre conhecimento e controle.
Hoje, em virtude da passagem da modernização simples para a complexa, não só os "riscos artificiais", mas também as pressões para a democratização social se avolumaram, "desencaixando" os contextos locais de ação e, ao mesmo tempo, alterando o caráter da ordem global e a relação com a natureza e com as tradições.
De modo que a democracia se tornou uma idéia universalmente popular, só que isto ocorreu, simultaneamente, com o questionamento sem precedentes do Estado-nação, esvaindo-o como "inteligência diretiva" e enquanto detentor do monopólio legítimo da força. Não é por outro motivo que Giddens vai considerar o controle dos meios de violência como o principal problema para a democracia, já que num contexto em que diversas culturas são levadas ao contato, a relação diálogo e violência caminha no limite dos fundamentalismos. A possibilidade do diálogo é vislumbrada, principalmente, pela emergência da reflexividade social ampliada, que implica a existência de pessoas inteligentes, capazes de gerar uma "confiança ativa", mobilizada pela discussão e pelo intercâmbio de idéias, e não pelo poder arbitrário ou pela tradição.
Giddens, no entanto, reconhece também que as condições para as explosões de violência estão dadas e que o mundo multinacional pode se desintegrar em razão do conflito de fundamentalismos -definidos por ele como tradições defendidas de maneira tradicional, ou seja, sem se abrirem ao diálogo e recusando-se a justificar-se.
Contra esse cenário, Giddens apresenta alguns eixos que podem orientar a efetivação de uma política radical: o combate à pobreza absoluta e à degradação do meio ambiente; a restauração de solidariedades danificadas (inclusive com preservação seletiva ou até reinvenção da tradição); a centralidade da política de vida em relação a domínios mais formais e ortodoxos da ordem política; uma concepção política gerativa, que busque construir "confiança ativa" nas instituições; o incremento de formas mais radicais de democratização, com ênfase na idéia de democracia dialógica; a necessidade de repensar o "welfare state", já que seus sistemas de seguridade social não foram concebidos para enfrentar o risco artificial; o equacionamento e a diminuição do papel da violência na vida social.
Mas, se é possível conceber um programa para a política radical, cabe a pergunta: que valores e que sujeitos expressariam a orientação desse programa? Principalmente, porque hoje quem prega a transformação permanente, adotando-a como bandeira e desencadeando processos inéditos, são justamente os neoliberais. A esquerda, ao contrário, após a derrocada do socialismo real, tornou-se defensiva, e até conservadora, procurando preservar certas instituições do "welfare state".
É esse paradoxo que explica a afirmação de Giddens: o neoliberalismo é de direita sem ser rigorosamente conservador, já que não cultua a "tradição" enquanto "sabedoria herdada do passado", mas desencadeia vigorosos processos de mudança, empurrado pela expansão de mercados e pela busca de competitividade a qualquer custo. Ou seja, o neoliberalismo, em sua sanha produtivista, não tem vínculos mais sólidos nem com a tradição nem com o pensamento conservador.
Dessa constatação Giddens extrai a idéia de que o "conservadorismo filosófico" -uma política de proteção, preservação e solidariedade- se afasta do neoliberalismo e pode adquirir um novo significado para a política radical. A crescente afinidade entre essas posições e as do movimento verde e da própria esquerda, permitem a Giddens sustentar sua principal tese: estão surgindo princípios éticos mais ou menos universais que tendem a unir perspectivas fora dos domínios dos fundamentalismos. É por isso que direita e esquerda não possuem mais o significado que tinham. Exatamente porque o nosso relacionamento com o desenvolvimento se alterou, a análise crítica das sociedades contemporâneas e a ação radical devem buscar inspiração não apenas no socialismo, mas também no pensamento conservador e ecológico. Esta é, sem dúvida, uma proposição ousada. Vale a pena conferi-la.

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