São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O primeiro elo da cadeia

HENRIQUE MURACCHO

eis uma obra de raro valor, que revela um jovem latinista de grande talento, erudição e inspiração.
Num breve prólogo, ele propõe o seu trabalho, uma espécie de guia do leitor. A introdução começa pela apresentação do poeta Catulo, "sofisticado e diverso, sujeito a controvérsia". "Rufião", para T. S. Eliot; para Baudelaire, "ele e seu bando eram poetas grosseiros e puramente epidérmicos, sem misticismo algum"; na opinião de Cícero, juvenis e "repetidores de Euforião (poeta grego medíocre)", produtores de "nugae", casquinhas de nozes, futilidades.
Catulo, nascido entre 87 e 84 a.C. e morto entre 57 e 54 a.C., um poeta que viveu 30 anos. Lembra um pouco a nossa geração romântica. Poucas referências aos conhecimentos de um período crucial para a história de Roma e do mundo ocidental. A república romana convive mal com o império que ela constrói. Há uma inquietação popular que cresce; o poder sai várias vezes das mãos do Senado e passa para as mãos de "ditadores": ditadura de Sylla, 82-79 a.C., revolta de Espártaco, 73-71 a.C., consulado de Cícero e conjuração de Catilina, 63 a.C., consulado de César e Primeiro Triunvirato, 59 a.C., início da conquista de Gália, por César, 58 a.C. Esses acontecimentos são citados apenas de leve, incidentalmente, pelo tradutor e intérprete, seguindo o poeta. É que o interesse de Catulo não está aí. Catulo é um poeta e um intelectual; e faz parte de um grupo de poetas e intelectuais, naturalmente oriundos da classe abastada, dominante (ele chega a exercer alguma função administrativa na Bitínia na comitiva do pretor Mênio).
Catulo não é o que hoje chamaríamos um intelectual "engajado". Nem os outros o eram. Ele faz parte de um cenáculo, onde esses jovens poetas se reúnem e fazem suas composições, introduzindo em Roma a poesia helenística, sobretudo a poesia de Calímaco, de quem Catulo é fervente admirador e tradutor. E é esse o Catulo que vai ser estudado e traduzido por João Ângelo.
Segue-se um breve e consistente estudo sobre a literatura, principalmente a respeito da poesia helenística. As conquistas de Alexandre e depois a tripartição de seu império trazem profundas consequências, e a mais importante delas é esta: "o fim da pólis como a microcósmica instância pela qual o homem grego, o cidadão, quer no âmbito urbanístico-arquitetônico, quer no político e religioso, participava de tudo". O homem da pólis cede ao homem "kosmopolítico" do universo, e por um estranho contraste, um homem desvinculado da pólis, individual. A concentração do saber e de sua produção na biblioteca de Alexandria, desvinculada da pólis, é causa e efeito. A produção literária reflete esse estado de espírito. "Mudando a atitude perante o texto, a atividade da Biblioteca modificou a concepção mesma da palavra poética, do fazer próprio da poesia".
Diante de um texto tão denso e maduro, com apoio de uma bibliografia especializada e competente, como o dessa introdução, o resenhista fica tentado a construir quase um texto paralelo. Deixemos essa tarefa ao leitor. Ele ganhará muito nessa leitura.
Destaquemos apenas a parte mais importante: o papel, a visão, as opções do tradutor e a apresentação da obra de Catulo, que passa pela de Calímaco e Euforião, com seus gêneros: imprecações, epigramas, "moÛsa paidiké" (poemas sobre o menino, pederásticos), elegias, hinos e "iamboi". O ritmo jâmbico é de origem jônica, alegre, festivo e, segundo Aristóteles, representa o andar do homem (pé de apoio e pé de lance), isto é, breve-longa. Esse passo, estilizado, satirizado, é o metro mais comum nas composições satíricas, epitalâmios, epigramas, todas as composições leves.
Segue-se a apresentação da obra de Catulo, dividida em três partes: de 1 a 60, de metros e temas variados; de 61 a 68, "carmina docta", longiora, maioria, também de metro variado; e de 65 a 116, poemas em dísticos elegíacos.
Mas a grande preocupação de João Ângelo é a poesia mesma de Catulo e de como traduzi-la para o português, uma vez que seu objetivo confessado é divulgar a poesia latina. Depois de uma leve incursão pela história das traduções em língua portuguesa, Garret e Castilho, até os contemporâneos, J. Paulo Paes, H. de Campos, N. Ascher, que "encaixota" o poema 32 numa imitação das inscrições em pedra, João Ângelo apresenta a "sua tradução". E é aí que ele mostra toda a sua serenidade, seu empenho, sua honestidade, seu trabalho, sua competência e seu talento. Mas, além disso, ele mostra sua inspiração, contaminada diretamente de Catulo, como no "Íon", de Platão, em que Sócrates explica ao rapsodo porque ele é o melhor intérprete de Homero. Ele o é não por uma arte, mas pela inspiração da divindade: ele é um elo de uma corrente, cujo primeiro elo é o poeta e que está dependurada da pedra de Heraclés.
A tradução está "colada" ao texto catuliano, verso a verso. E aqui quero discordar do tradutor. Ao justificar seus critérios de tradução ele cita Haroldo de Campos: "O pressuposto teórico subjacente a esta postura (critérios de tradução) deve-se a H. de Campos, que, introduzindo sua tradução do Canto 10 da 'Ilíada' afirma: '... estabelecer uma correspondência verso a verso com o original (...) empenhado em recriar em nossa língua, quanto possível, a forma da expressão (no plano fônico e rítmico-prosódico) e a forma do conteúdo (a 'logopéia', a poesia da gramática) do Canto 10 da 'Ilíada' ".
João Ângelo vai muito além. Ele não só consegue encontrar na língua portuguesa metros e ritmos que "traduzem" os metros e ritmos latinos, na forma da expressão -no plano fônico e rítmico-prosódico-, como também na forma do conteúdo. E nisso ele segue os passos de Cícero, que "propõe traduzir como instância de comunicabilidade entre culturas, e muito claramente discrimina tradução de significados de tradução de termos: 'não verti como tradutor, mas como orador, com as mesmas idéias e suas formas...' " (pág. 62).
João Ângelo poderia "parodiar" Cícero e afirmar: "não verti como tradutor, mas como poeta...". É essa a impressão que se depreende de sua tradução, mas com duas vantagens sobre o tradutor do Livro 1º da "Ilíada": a língua latina, que permite a João Ângelo, como a Odorico Mendes, que se apoiou muito na tradução latina dos poemas homéricos, traduzir, sem intermediários, termos, significados, ritmos e sonoridades (o que é muito mais difícil do grego para o português); e a sua competência, seu conhecimento da língua latina, o que lhe permite essa proximidade rítmica, prosódica e semântica.
Essa competência se manifesta também na erudição que o tradutor revela nas inúmeras notas que acompanham todos os poemas, além das notas de referência na "Introdução", reveladoras de suas leituras dos teóricos da tradução e dos poetas da Antiguidade Clássica, especificamente dos poetas do período helenístico.
Não poderíamos deixar de mencionar o aspecto gráfico desta edição. Nela realmente se aliam "texto e arte". A competência na impressão e as inúmeras ilustrações dão testemunho disso. Apenas uma observação: o texto latino poderia estar paralelo ao texto português; facilitaria muito a leitura. Fica a sugestão para a próxima edição, que virá logo, certamente.

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