São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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O analista, o filósofo e a feiticeira

OSMYR FARIA GABBI JR.

na sua nova coletânea de ensaios, Mezan retoma as mesmas preocupações presentes em seu livro "A Vingança da Esfinge". Em ambos, o método de leitura é o mesmo. Trata-se de aliar a "indispensável análise formal -sem a qual nos condenamos a jamais saber do que está falando o autor, e arrogantemente substituímos os seus argumentos pelas nossas projeções", a uma outra em que se busca "apreender o movimento das figuras que animam o texto, buscando vislumbrar a paisagem imaginária que o sustenta". Dessa forma, tem-se por fim estabelecer uma completa harmonia entre método e objeto de investigação, uma vez que o objetivo da nova coletânea é mostrar como "sob a dimensão mais abstrata dos conceitos teóricos, sujeitos às regras do pensamento racional que a psicanálise designa com o nome de 'processo secundário', continua a pulsar o lado plástico, sensorial, cênico, que ancora as produções do secundário no terreno movediço do processo primário". Assim, a fidelidade ao texto deve ser atravessada em algum momento oportuno pela atenção equiflutuante do analista. Só este, dada a sua atividade clínica, teria condições de recuperar sem faltas ou acréscimos indevidos as vibrações da fantasia ocultadas pela monótona natureza paciente do conceito.
A justificativa para semelhante projeto residiria na própria concepção de Freud sobre a atividade teórica, no seu reconhecimento de que há momentos em que a feiticeira metapsicológica precisa intervir. Esse tipo de leitura, designado de "leitura psicanalítica", apresenta as propriedades significativas de estar "igualmente distante do formalismo escolar que quer apreender apenas os resultados sem atentar para o processo que os produz, e da rematada tolice que consiste em abandonar a precisão da exegese para se entregar às delícias nebulosas do 'eu acho' e 'eu sinto' ".
Para os que pensam ser possível uma leitura filosófica da metapsicologia, Mezan considera que o encontro da filosofia com a psicanálise não tem sido sempre muito frutífero: "A começar pelo próprio projeto de ler Freud como se lê um filósofo". No entanto, a cuidadosa análise que ele nos oferece no último capítulo da coletânea, "Três Concepções do Originário", é uma prova profunda de como pressupostos filosóficos parecem orientar de maneira nítida a escolha daquilo que deve restar da herança freudiana para três psicanalistas franceses. As diferenças teóricas entre Stein, Le Guen e Laplanche, embora possam ser creditadas a uma suposta "imaginação teórica", não podem ser facilmente reduzidas de forma cabal "à exigência de isomorfismo entre os processos psíquicos em geral e os processos que se desenvolvem na situação analítica", pensada como o "único meio de construir uma ponte entre a teoria metapsicológica destes processos e as modalidades de intervenção que permitem atingi-los e alterá-los".
Mesmo que se mostre que cada teoria psicanalítica resulta da espécie de neurose ou psicose tratada e do imaginário do analista envolvido, as interrogações sobre o seu campo de validade e sobre os jogos conceituais que ela instaura permanecem como questões. Se a psicanálise enquanto prática envolve o analista, a reflexão teórica sobre a psicanálise e "a fortiori" sobre a metapsicologia podem ser objetos de atenção do filósofo sem, por isso mesmo, levarem a uma tentativa de ensinar ou propor correções, em nome de um suposto rigor, a Freud. A investigação proposta poderia ser entendida, sem ser transformada em uma extensão da clínica psicanalítica, como um convite a estudar o campo semântico das metáforas de Freud.
Por exemplo, o que significa a declaração freudiana de que "a teoria das pulsões é o nosso mito"? É totalmente descabido procurar respondê-la a partir de associações livres com o termo "mito". Apenas o estudo do contexto das suas ocorrências na obra de Freud pode lançar alguma luz sobre o seu sentido. Também poderia ser traduzida em linguagem metapsicológica como uma interrogação a respeito dos vínculos entre representação de palavra e representação de objeto na produção do pensamento teórico, ou seja, como o estudo da relação entre palavra e imagem. Relação que é tomada como um dos eixos centrais de Assoun em sua "Metapsicologia Freudiana - uma Introdução".
A obra apareceu na França 12 anos depois do seu anúncio no final de "Introduction à l'Épistemologie Freudienne" (Payot, 1981). Pois, antes de abordar diretamente a metapsicologia, é preciso "efetuar um trabalho preciso de restauração histórica que nos leve, através de transições e rupturas, até a fronteira onde a conformidade das linguagens desemboque no inédito do objeto".
Após criticar as tentativas de corrigir a psicanálise por meio da filosofia, que consistem basicamente em separar método de teoria, ele passa a enumerar corretamente os fundamentos epistemológicos da psicanálise: monismo metodológico, interpretação entendida como explicação, adesão total às ciências da natureza e reducionismo. Em suma, a psicanálise deve ser entendida no quadro do naturalismo, do fenomenismo. Se não cumpre separar clínica de metapsicologia, as duas devem ser concebidas no interior dessa mesma moldura. Logo, não é estranho que se observe a propósito da sentença "a teoria das pulsões é o nosso mito" que ela exprima "uma exigência estritamente epistemológica que torna toda ciência da natureza tributária de sua mitologia". Apropriadamente, ele constata que "Freud está notavelmente ligado a modelos epistemológicos antigos". Fato que pode ser atestado por qualquer leitor cuidadoso de "Projeto de uma Psicologia Científica".
Neste manuscrito de 1895, Freud propõe um modelo da mente que o aproxima mais dos sensualistas franceses do século 18 do que da pesquisa médica, própria do final do século 19. A excelente obra de Luiz Roberto Monzani, "Desejo e Prazer na Idade Moderna", mostra como, entre os séculos 16 e 18, a noção de desejo foi naturalizada e as relações de intencionalidade reduzidas a efeitos de um mecanismo, de uma máquina de produzir prazer e evitar dor. Nada mais distante de Freud que a noção de Hegel sobre o desejo, tão cara à psicanálise francesa e aos seus prolongamentos nos nossos trópicos.
Talvez Mezan tenha razão quando observa que os psicanalistas franceses "fiéis a Lacan em sua recusa de se curvar às evidências do senso comum psicanalítico, ainda que, em sua versão lacaniana, esses autores retornaram a Freud como o próprio Lacan fizera em seu tempo; mas o resultado dessa viagem foi bem diferente". Aparentemente, todos os resultados partiram de uma crença comum: a psicanálise de Freud deve ser desnaturalizada para poder ser captada na sua radicalidade. Desse modo, podemos nos interrogar se Assoun, ao desenvolver o seu tratado de metapsicologia freudiana, manteve os parâmetros que estabeleceu na sua investigação inicial.
No início da apresentação do objeto metapsicológico, Assoun acredita que, para tratar do inconsciente, "Freud herda, aqui, o problema kantiano da representação transcendental: como apresentar o 'x' com cara de sujeito, essa 'coisa em si' que só é abordável com o rosto do sintoma?". Infelizmente não se está propondo apenas um problema que recorre ao vocabulário kantiano. A pretensão é filiá-lo de alguma maneira ao pensamento de Kant. Não seria mais promissor, dado o naturalismo afirmado de Freud, interrogar-se como Freud responderia à objeção de Kant em relação a toda concepção naturalista, ou seja, como evitar o ceticismo (Hume) sem cair na fantasia (Locke)? A consequência da pretensa filiação não tarda: "Portanto, se o 'sujeito' não é uma categoria metapsicológica, ele organiza a experiência do inconsciente, à maneira de um a priori introduzido por essa experiência". Ou seja, o naturalismo freudiano recorreria a uma categoria fantasma (sic) para funcionar como um a priori, isto é, ele não seria, afinal, tão naturalista assim. O que se perdeu aqui? A possibilidade de entender como a linguagem desempenha na teoria de Freud, dada a sua função denotativa, o papel de elemento unificador do fluxo das sensações.
No entanto, Assoun, ao tratar da doutrina da representação da matéria metapsicológica, parece retê-la quando retoma as considerações de Freud sobre representação de palavra e de coisa em "Sobre a Concepção da Afasia"(1891) e reconhece a dívida em relação à filosofia de Stuart Mill, chegando mesmo a observar: "Aí está a 'extremidade sensível' -sendo a palavra essencialmente "escutada"- que faz às vezes, de certa forma, de 'esquema' (para parafrasear o termo kantiano): a 'imagem sonora' 'tampona', por assim dizer, significante (verbal) e significado (objetal)" . O problema é que não faz "às vezes"; ao contrário, faz "sempre". O uso dos termos significante/significado é para poder adiante constatar uma "notável consonância com a concepção exposta por Saussure". Se a aproximação com o naturalismo fosse mantida, seria possível entender que o adágio goethiano ("no começo era a ação") exprime a tese de que antes da representação está a sensação e, dado que a ação para Freud nada mais é do que um complexo de representações acompanhado de motilidade, a ação inicial é sempre a ação de uma outra pessoa.
Em suma, se o projeto impressiona pela sua ambição, pelo trabalho de leitura, desaponta quando toma a obra de Freud, quase sempre, como se ela desconhecesse a dimensão do tempo. Textos de períodos muito diferentes são justapostos de modo a poder extrair certas consequências desejadas. Por outro lado, é irritante quando ele mistura léxicos de diferentes filosofias para produzir proposições como: "O corpo freudiano é ao mesmo tempo mais complexo que um corpo empírico e menos 'rico' que um corpo doador de sentido: é o ser mesmo da projeção elevado ao nível de para-si". A produção psicanalítica francesa precisa liberar-se do seu preconceito contra o naturalismo de Freud. Afinal, quem não sabe que o termo 'figura' tem ressonâncias hegelianas?

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