São Paulo, sexta-feira, 11 de outubro de 1996
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Baixinhos sabem crescer na hora exata

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Primeiro foi Marília Gabriela. Falou entusiasmada sobre Maria Bethânia, não exatamente a cantora, mas a "persona" que a cantora encarna toda vez que se apresenta no palco. De acordo com Gabi, a miudinha Bethânia cresce, fica da altura da estátua da Liberdade, é um troço.
Depois foi José Simão, que disse a mesma coisa e revelou o mesmo espanto. Maria Bethânia até que pode parecer insignificante no dia-a-dia. Mas quando entra em cena ela cresce como um cisne (não sei se Simão falou em cisne, falo eu). E quando recita Fernando Pessoa aí mesmo é que Simão delira -e sabe o que está fazendo.
Até o classudo Augusto Nunes, embora não falasse de Bethânia, confessou sua admiração pelo filme "A Dama do Lotação". Ele não podia se esquecer de Sonia Braga fazendo das suas -tantos anos depois de ter visto o filme. Nunes ainda guarda o número das suculentas fornicações daquela personagem de Nelson Rodrigues.
O erudito debate sobre Bethânia e Sonia Braga foi um dos temas da primeira apresentação de "First Class", no SBT, terça-feira passada.
Convidado por Marília Gabriela, também dei minha opinião sobre Bethânia, na incômoda posição de testemunha ocular da história. Vi a estréia dela no show "Opinião", quando substituiu Nara Leão. A platéia levou um susto: quem seria aquela sertaneja angulosa que tomava o lugar da roliça e ipanemense musa da bossa nova urbana e acariocada?
Bastou os primeiros versos de "Carcará" e todos sentiram que estavam diante de uma deusa cheirando a cangaço, cuja voz rascante parecia nascer de fontes ressecadas pelo sol. Para resumir: ali, no programa, todos concordamos que Bethânia é divina, maravilhosa etc.
Não houve tempo -nem estava no roteiro- de falar sobre esse estranho fenômeno que marca e define os eleitos do palco. Lembro a primeira vez que vi Claudia Cardinale em pessoa, fazendo um filme no Rio. Era baixinha, insignificante, parecia que ia abrir uma cesta e começar a vender artesanato hippie ali na areia de Copacabana.
No cinema, sobretudo quando em preto-e-branco, ela se transformava num mulheraço de 50 metros de altura. Fellini a colocou como fêmea fatal em "Oito e Meio".
O que faz determinada atriz crescer em tamanho é talvez um dos mistérios do teatro. Tempos atrás, editando uma revista que preparava o número de Natal, a minha produtora sugeriu que a capa fosse uma bonita moça vestida de Papai Noel estilizada. Estávamos em cima do fechamento, aprovei a idéia, a produção procurou as beldades da época. Não estavam disponíveis.
Até que encontraram uma lourinha cujo nome nem guardei. Desci ao estúdio para ver a foto. Enquanto o Indalécio Vanderley preparava o equipamento, a produtora me indicou a modelo, que estava sentada num tamborete, com um saiote vermelho e um capuz de Papai Noel na cabeça. "Aquilo?", perguntei. Era tarde para providenciar outra modelo, o jeito foi acender as luzes e o Indalécio gritar: "Vamos!"
A mocinha deu um pulo, levantou o saiote vermelho, torceu o corpo branco em várias direções, os olhos -só então pareciam abertos- eram azuis e brilhavam, o banho de luz despejado pelos spotlights havia feito o milagre. Ali estava uma mulher que marcaria nosso tempo. Chamei a produtora, perguntei pelo nome da moça. "Xuxa", foi a resposta.
Outro exemplo dessa química misteriosa: Maitê Proença. Que ela é bonita ninguém contesta, um rosto consensual, todos sabem disso. Mas é pequenina, fica difícil imaginá-la num desses papéis centrais em que a história gira em torno dela.
Em cena, ela cresce espantosamente, trabalhou em dois projetos meus, "A Marquesa de Santos" e "D. Beija", deu conta do recado. Mais do que isso, firmou-se não apenas como a mulher bonita que sempre foi, mas como atriz capaz de segurar uma trama.
Também podia falar de Sonia Braga, que tanto enfeitiçou o Augusto Nunes em "A Dama do Lotação". Na vida real, ela é -com perdão da palavra- um lixo. Acesos os refletores, a câmera rodando, o gênio deslumbrante sai da lâmpada opaca e brilha.
São muitos os exemplos dessa transformação que, afinal, é o fundamento da arte cênica: crescer na hora exata. Humphrey Bogart era baixinho, também insignificante, e tinha uma voz rachada que deu arrepios a muitos caçadores de talentos. Allan Ladd precisava usar sapatos especiais para ficar na mesma altura das atrizes com quem trabalhava.
Bem, essas considerações, agora que chego ao fim do artigo, me parecem óbvias. Até o Zé Simão cresce nessas horas. Nunes é galã na vida real. Gabi não precisa crescer porque já é suficientemente alta. O vinagre sobra para mim, que na telinha consigo ser pior -sem dúvida uma façanha.
Como convidado desse primeiro "First Class", desejo a Gabi, Simão e Nunes longa vida e não menor sucesso, desde que descolem convidados menos trapalhões e mais interessantes.

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