São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Com o sexo na cabeça

MARCELO LEITE

O drama vivido pela atriz e modelo Cláudia Liz deveria servir de reflexão para jornalistas. É uma boa oportunidade para pensarem a respeito de seu papel como reprodutores de estereótipos sociais. Em lugar disso, o que muitos deles estão fazendo é uma condenação oportunista e moralista dos padrões físicos exigidos pelo chamado "mundinho fashion".
É fácil, agora, noticiar em tom de reprimenda que dois quilos a mais puseram a linda Liz em coma. Martelar, nas entrelinhas, que lipoaspiração é um barbarismo a serviço da vaidade (leia-se: futilidade) de algumas mulheres. Todos querem um bode expiatório para o que há de incompreensível numa ocorrência tão cruel com uma moça tão bonita e, dizem, feliz.
A Folha é um dos muitos órgãos de imprensa que promovem de forma pouco crítica o "glamour" anoréxico do mundo da moda. Top models e candidatas a esse Olimpo de araque aparecem com frequência na capa do jornal, em particular nas edições de domingo, por vezes com pouca roupa. É difícil encontrar uma reportagem de comportamento que não traga opiniões de uma "atriz e modelo".
Por força do ofício, muitas se dispõem a qualquer coisa para aparecer. Por exemplo, violar a própria intimidade e narrar episódios sexuais, constrangedores ou não. Houve uma época em que eram presença constante na página "Saia Justa", publicada aos domingos no caderno São Paulo/Cotidiano.
"Broxada", "pinto"
Já critiquei a facilidade com que "Saia Justa" tenta chocar leitores, com reportagens como a da semana passada ('Broxada' não tira bom humor feminino). Devo admitir, porém, que houve algum progresso: o jornal tem conseguido mostrar que o exibicionismo campeia também entre mulheres (e homens) de outros ramos profissionais -advogados, comerciantes, radialistas.
O culto público do sexo e do corpo é a mais democrática das religiões modernas. Não é preciso ser modelo para cair na armadilha. Falar compulsivamente desse manancial de pulsões incômodas e incivilizadas é a forma que nosso tempo encontrou de lidar com elas.
A imprensa é um dos arautos dessa suposta liberação (há quem acredite que se trata de uma forma repressiva, disciplinadora, de tolerância). Publicações mais liberais como a Folha se permitem até o uso de palavras chulas como "pinto" na capa de um caderno para jovens ("Quando o pinto é problema", dizia a capa do Folhateen da última segunda-feira, entre professoral e condescendente).
É impossível traçar limites "a priori" entre o que é moral ou imoral, entre o que pode e não pode ser publicado em jornal. Cada caso é um caso. "A posteriori", é bem mais fácil julgar.
Nesses casos específicos -"Saia Justa" e Folhateen- minha convicção é que a Folha se excedeu na sem-cerimônia. Agrediu alguns leitores, talvez poucos, mas nem por isso acrescentou algo de grande valor para os restantes.
Muitos vão achar estranho e até forçado reunir na mesma coluna o caso Cláudia Liz e esse libertinismo jornalístico. O fio condutor que os liga profundamente, acredito, é a modelização dos corpos, sua exibição ritual no altar da imprensa. Seria bom que jornalistas pensassem mais sobre isso, se ainda se importarem com adicionar alguns grãos de sal ao caldo insosso da informação.
Comércio de mulheres
Apesar de certa repulsa ao hábito de alguns colunistas de citar seus próprios textos, vou render uma homenagem ao vício. Faço-o não para comprovar uma inexistente faculdade premonitória, pois se tratava só de uma constatação (e bem óbvia), mas para mostrar que a discussão já foi proposta à Folha. Aparentemente, caiu no vazio.
Esse foi, na realidade, o tema central da coluna "Top models, topless, top quarks", de 5 de março do ano passado. Logo depois do Carnaval, e a propósito dos seios nus de Valeria "Globeleza" Valenssa na capa da Folha, dizia:
"Antigamente, mocinhas só pensavam em se tornar miss. Hoje, toda garota que tiver a sorte (ou o azar) de ser bonita ou de compor um 'tipo' qualquer pensa logo em produzir o 'book' e sair se oferecendo por aí. Seu instrumento de trabalho é o próprio corpo, mas virtualizado em fotografias retocadas por computador, disciplinados pela anorexia como ideal de vida.
"A imprensa é a praça pública em que se desenvolve esse novo comércio de mulheres, o monitor em que suas cotações sobem e descem à vista de todos. Se o seu valor de troca crescer muito, passam a almejar uma ponta em novela global (...)."
*
Em resumo: somente o farisaísmo explica que jornalistas, estilistas e agentes de modelos encham a boca, agora, para condenar a "ditadura" da moda.
Previsão do tempo
Sobre a necessidade de dar maior transparência à falibilidade da previsão meteorológica publicada na Folha, defendida na coluna de 25 de agosto ("Margens e Erros"), reproduzo trecho da carta eletrônica que recebi de Carlos Nobre, chefe do CPTEC (Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos), que fornece os dados para o jornal:
"O que é óbvio para nós é que a Folha deve alertar e educar o leitor a utilizar corretamente a previsão de tempo. Não é simples entender o que vem a ser 'falibilidade' de uma previsão.
"Por exemplo, o sistema de previsão do CPTEC, com base num modelo matemático-físico da atmosfera que roda em supercomputador, procura prever as perturbações atmosféricas (o tempo) que ocorrem em grandes áreas (não menores que 50 mil quilômetros quadrados), como as frentes frias. É para esse tipo de previsão que as margens de acerto são altas (90% no primeiro dia, caindo para 60% acima do quinto dia). Mesmo nessas circunstâncias, a margem de acerto para previsão de chuvas é menor. É muito mais difícil prever chuvas em regiões tropicais e subtropicais, pois elas são, muitas vezes, fenômeno localizado e de curta duração.
"O modelo atual de previsão não é adequado para prever temporal com granizo. Esses fenômenos intensos desenvolvem-se rapidamente e o estado-da-arte, hoje, somente permite prevê-los com antecedência de horas, utilizando radares e satélites meteorológicos. Devido aos horários de fechamento das edições de jornais, seria difícil poder transmitir esse tipo de informação aos leitores.
"Em resumo, o leitor deve ser informado, sim, sobre a falibilidade e limites da previsão. Deve entender o alcance da informação. O CPTEC está à disposição da Folha para elucidar essas questões."
*
Com a palavra, a Redação. Pelo visto, há muito o que explicar.

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