São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Freire e Axé ensinam crianças a sonhar

FERNANDO ROSSETTI
ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR (BA)

Falta respeito aos professores e estudantes na escola pública brasileira, afirmam o mais famoso educador do país, Paulo Freire, 75, e o idealizador do trabalho educativo não-governamental mais conhecido no exterior, Cesare de la Rocca, 59, presidente do Projeto Axé.
Para os professores, a falta de respeito vai da baixa remuneração à má formação. Para os estudantes, o problema é que, com esses professores, é difícil ter uma boa educação. E a própria estrutura física das escolas está decaída.
Freire e La Rocca falaram juntos à Folha no final de semana passado sobre o que o sistema público de educação do país tem a aprender com o Projeto Axé, que trabalha há seis anos com meninos e meninas de rua em Salvador (BA).
Com um orçamento de R$ 220 mil por mês -bancado pelos governos federal e estadual e por uma série de organizações internacionais-, o Axé hoje investe cerca de R$ 160 por mês em cada um de seus mil educandos. O governo está tentando elevar o gasto mínimo por aluno da rede pública a R$ 300 -por ano.
Mas o Axé é uma iniciativa não-formal de educação e tem, como princípio, a exigência de que seus meninos e meninas frequentem uma escola regular.
A seguir, trechos da entrevista, em que os dois discutem a pedagogia por trás do sucesso do Axé e a viabilidade de essas idéias se generalizarem na rede pública do país.
*
Folha - O que é a pedagogia do desejo, do Projeto Axé?
Cesare de Florio la Rocca - Nossa filosofia inicial foi baseada na construção teórica de Paulo Freire. À medida que íamos armando os educadores com essa pedagogia, começamos a verificar que criança que está na rua -depois verificamos isso na criança de periferia, da classe popular- perdeu, ou tem escondida, a característica fundamental da infância, que é sonhar, desejar e ter ambições.
Então elaboramos uma proposta pedagógica em que estimulamos permanentemente o menino e a menina a voltar a desejar e a sonhar. E sonhar alto.
A imagem é que, com a estimulação, leva-se o menino para cima, sem medo. Compete depois a nós, educadores, colocar um pára-quedas pedagógico para que ele possa pousar suavemente num campo onde encontre as oportunidades para sua realização.
Folha - Mas como isso é feito?
La Rocca - Tem uma ambiência que facilita isso, que é a beleza, a cultura e a arte. Até os meninos que estão nas ruas acompanhados pelos educadores são levados a visitar museus, exposições, o Balé Castro Alves e algumas apresentações de teatro.
Paulo Freire - Até me emociono ao ouvir a explicação que o Cesare dá sobre a pedagogia do desejo. Eu me lembro que, nos anos 80, houve um movimento forte de bóias-frias em São Paulo. Vi pela televisão uma entrevista em que uma jornalista se encontrava com um adolescente e perguntava: "Você sonha?". E o menino respondeu: "Não, eu tenho só pesadelo".
É interessantíssima essa resposta. É a confirmação do que Cesare acaba de dizer. No fundo, essa é uma infância que vem sendo proibida de sonhar. E o sonho, a arquitetura de hipóteses, o lúdico, faz parte da experiência das crianças.
Essa possibilidade de sair um pouco de dentro de si mesmo faz com que o ser aprenda a manejar o imaginário.
Folha - Mas como o Projeto Axé se articula com sua pedagogia?
Freire - A experiência do Axé é altamente positiva, utópica, no sentido que eu defendo. É um sonho que fala do sonho, é um sonho de dignidade humana. Veja o ambiente físico em que estamos (a empresa-escola, no Pelourinho), o cuidado com as paredes, com as cores. Você entra em uma sala como esta e descobre, sem nenhuma dificuldade, a unidade. Não é justaposição, é unidade entre boniteza, seriedade e rigor. Você encontra a ética realmente casada com a estética -e para mim, cada vez mais, é difícil vê-las separadas.
Uma estrutura material como esta, limpa, cheirosa, bonita, necessariamente tem em si uma pedagogia. Essa estrutura aqui cobra da criança o respeito por ela.
Folha - E por que essa prática tem dificuldade de se institucionalizar, de se generalizar no Brasil?
La Rocca - Quando nós começamos a receber, uns três anos atrás, muitas solicitações para implantar o Axé em outras cidades, verificamos que, se aceitássemos, estaríamos negando nossa postura política. Porque a solução da questão das classes populares e de seus filhos não passa pela multiplicação de projetos bem-sucedidos. Passa pelo fortalecimento de políticas públicas.
Eu diria que a dificuldade é a incompetência por parte de determinados poderes públicos de transformar a proposta de um projeto em políticas permanentes. Isso é terrível. Mas é possível, desde que haja vontade política.
Freire - Para mim, a própria burocratização obstaculiza a transformação desse tipo de projeto em políticas governamentais. A burocracia, no fundo, é correta, necessária. O que é inaceitável é a distorção que transforma a burocracia de meio em fim.
Ao lado disso, eu acho que falta clareza política, falta coerência política e falta uma certa vontade de trabalhar em favor das mudanças necessárias de caráter estrutural da sociedade. Há um medo exagerado da mudança, um esforço quase doentio em perpetuar o presente, que obstaculiza definitivamente um trabalho como esse.
Folha - O que a experiência do Axé pode ensinar às redes regulares de ensino?
La Rocca - A coisa que me deixa extremamente preocupado é a visão ainda imperante de que, para pobre, é suficiente uma educação pobre. É por isso que educação não tem prioridade, que a escola pública universal de qualidade é só papo furado.
O desafio do Axé foi desde o primeiro instante dar a melhor educação para os mais pobres. Mas, para isso, eu preciso do melhor educador. Preciso de um profissional, não de um voluntário. Preciso respeitá-lo, formá-lo, selecioná-lo e depois remunerá-lo adequadamente. É evidente que, se eu não tiver recursos, não posso levar a efeito esse sonho político.
Freire - Assim como educadores dentro da sala de aula não podem cobrar das suas crianças o respeito à sala se a sala já é desrespeitada pela escola, o Estado não pode cobrar dos educadores competência e rigorosidade se não os paga bem.
O que a gente observa na história da educação brasileira é um desrespeito constante -com alguns ciclos de menos desrespeito- à prática educativa e, portanto, às educadoras e aos educadores. Como é que você pode ter uma professora competente, curiosa, indagadora, à procura da satisfação permanente de sua curiosidade, com salários que não permitem a ela comprar nem sequer jornal?
Folha - Além do investimento maior, o que o Axé pode ensinar?
Freire - Eu acho que uma das coisas a que a experiência do Axé pode desafiar a escola pública brasileira é exatamente o respeito à prática educativa e, portanto, respeito aos sujeitos dessa prática, os educadores e os educandos.
O Axé revela esse respeito quando insiste desde o começo na formação de seus quadros. E o Axé entende a formação como permanente -e nisso eu me descubro no Axé. O Axé não aceita que ninguém esteja definitivamente formado.
La Rocca - Formação, no Axé, desde o primeiro estágio, é contínua, permanente e lógica. Não é uma sucessão de eventos formativos, é uma programação feita em cima da necessidade da criança e da necessidade do educador.
Segundo, faz parte do contrato do Axé que o educador contratado por quatro horas diárias tenha cinco horas semanais de formação. A análise permanente da prática chama o educador a não ser objeto de formação, mas sujeito dela.
Freire - A outra coisa que me parece muito óbvia, que poderia ser reinterpretada na escola pública, é o profundo respeito ao educando. Não é possível uma educação que desconsidere as experiências de sabedoria com que o educando chega à escola.
Eu não estou de jeito nenhum defendendo que a escola fique parada ao nível dessa sabedoria que a criança traz. No que eu insisto é que a escola respeite essa sabedoria. Para superar o que a criança traz é preciso partir dela e não da sabedoria da escola.
Folha - Por que Salvador foi escolhida para montar o Projeto Axé?
La Rocca - Quando eu decidi deixar o Unicef, depois de ter vivenciado aqui cinco anos de mudanças do panorama legal no Brasil -a Constituição (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)-, pensei que era necessário colocar algo em prática que dissesse que essa legislação era boa e viável. Comecei a sonhar com um projeto que fosse capaz ao mesmo tempo de atender a criança e defender seus direitos.
Por fatores burocráticos internos deles e a priorização dos financiadores para o Nordeste, eles conservaram Salvador.
Folha - Mas você acha que daria certo em São Paulo?
La Rocca - Sem nenhuma dúvida. Tem um pedido da presidência dos micro e médios empresários de São Paulo para a implantação, sem nenhuma preocupação financeira, de um grande projeto com as características do Axé em São Paulo. Eles querem que se chame Axé. Aí é que está o erro, tem que ser algo de acordo com São Paulo. Não dá para ser Axé em São Paulo.
Toda vez que me dizem que a Bahia é mágica, que tem cultura, eu digo: "Calma aí, todas as regiões são mágicas em termos de cultura". A magia e o charme da Bahia você encontra na periferia de São Paulo, no Nordeste inteiro, nas escolas de samba do Rio.
Freire - Uma das condições também para que um projeto como esse vingue é essa humildade. Veja, por exemplo, o que respondeu Cesare ao convite: a questão não é propriamente transplantar o Axé para São Paulo, mas reinventar o Axé em São Paulo. No fundo essas experiências não se exportam. Se recriam.
La Rocca - Desde que cheguei ao Brasil, sempre tive um fascínio enorme por São Paulo. O Axé ainda tem no cerne elementos da Pastoral do Menor de São Paulo da década de 70, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que são grandes inspiradores do Axé. Até da Secretaria do Menor, que enveredou por um caminho muito interessante no começo.
São Paulo sempre foi um celeiro de grande criatividade em termos de respostas para as classes populares, de educação para as crianças. Como é que São Paulo, com todo esse potencial, não consegue criar algo de muito forte no âmbito do Estado, da capital? É uma grande pergunta.
Folha - O sr. se coloca como um homem de esquerda. Mas a oposição às atuais políticas ditas neoliberais, que incluem a educação, não estaria sem um projeto?
Freire - Não se pode negar que a estupefação do mundo e, sobretudo, das esquerdas, com a queda do Muro de Berlim deixou um sem-número de gente sem saber o que fazer, sem projeto.
Mas esse grupo de esquerda não aceita, por exemplo, que a história morreu, porque para a história morrer é preciso que morramos primeiro, homens e mulheres. Na afirmação da morte da história o que a gente tem é a imobilização do presente e a desproblematização do futuro. A morte da história hoje representa a preservação do presente neoliberal.
Hoje, posso até aceitar, numa discussão, que não existam mais classes sociais. Mas eu pergunto: a exploração acabou? A dominação acabou? Não há uma tentativa, por exemplo, de amaciar, de adocicar o próprio processo dominante? O conflito está aí, o conflito existe, não é uma invenção de Marx.
Ora, veja como o discurso neoliberal está indiscutivelmente imbuído de uma ideologia fatalista, que opera apenas quando o objeto paciente da ideologia são as classes populares: "Há 33 milhões de brasileiros que morrem de fome. É trágico, mas o que é que se pode fazer, a realidade é essa mesma".
Milhões de homens e mulheres se desempregam no mundo, não só no Brasil. O que se diz? Que é uma fatalidade do fim do século.
Mas os trilhões de dólares que andarilham pelo mundo, esse capital ganancioso, terrível, indo de um lugar a outro onde dê mais, isso perturba, cria crises, pode acabar com o equilíbrio da economia de um país da noite para o dia.
E eu me lembro de que o professor Fernando Henrique Cardoso disse que é preciso disciplinar essa andarilhagem dos dólares. Quer dizer, aí não há fatalismo.
La Rocca - Eu acho que a grande bipolarização entre aquilo que pensa a direita e aquilo que pensa a esquerda hoje está muito bem condensada no pensamento do velho sábio, que foi meu professor, que é Norberto Bobbio.
Eu acho que o inevitável das desigualdades intoleráveis é a utopia da superabilidade dessas desigualdades, que deveria ser a característica da esquerda hoje.
Mas essa falta de lucidez na esquerda ainda não permitiu que ela se colocasse como alternativa viável, forte, tão forte como a neoliberal, ou a de direita, que oriente programas de governo rumo àquilo que o Paulo não se cansa de repetir, rumo ao sonho possível, a utopia realizável.

Texto Anterior: Cultivam "barba e bigode"
Próximo Texto: Educador 'paquera' menino de rua na BA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.