São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Perto do novo renascimento

DO ENVIADO ESPECIAL

Nesse trecho da entrevista à Folha, Fernando Henrique explica por que considera que a mundialização é um "novo Renascimento", critica a visão pessimista da cultura contemporânea e diz que considera rica a cultura brasileira de hoje.
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Folha - Recentemente o sr. disse que a mundialização "sinaliza uma era de prosperidade sem igual na história do homem, que vai haver um novo Renascimento"...
FHC - Essa possibilidade é dada porque você tem, digamos, desenvolvimento cultural e tecnológico do tipo que houve no Renascimento. O que foi o Renascimento? A descoberta do novo mundo, avanços marítimos, a incorporação do outro naquele mundo fechado, um tremendo desenvolvimento científico, revoluções de todo o tipo. Esse século 20 foi, talvez, não sei, um dos mais ricos na história da humanidade, você mudou o modo de viver, por causa das comunicações, dos transportes, da educação e, por causa disso, porque o mundo ficou um só, a aldeia global é um fato. Você tem tudo "on line", a relação tempo-espaço ficou diferente. Nesse sentido que falo de um renascimento. Não é por causa da globalização -pois seria uma apologia da globalização, não é meu pensamento. Hoje você dispõe de condições como nunca na história de resolver problemas. Não quer dizer que você vá resolver. Há uma acumulação de riquezas como nunca houve, uma potencialidade de riquezas em todos os sentidos, até cultural, como nunca.
Folha - Agora, essas condições culturais -cultura como o sr. disse, também incluído o acesso de muito mais pessoas, o fato de haver ciência e recursos tecnológicos na mão de muito mais gente-, certas características culturais do capitalismo, da sociedade de massas, continuam a ter seus traços cada vez mais reforçados -e são características negativas...
FHC - Sempre têm. Quais são, por exemplo?
Folha - O "bazar cultural mundial", a estandardização, a fragmentação...
FHC - Não acredito na estandardização...
Folha - .. e por último o fato de que essa fragmentação tira as pessoas do espaço público e despolitiza terrivelmente.
FHC - Não acredito nisso. Isso é a visão atualizada da Escola de Frankfurt, o pessimismo básico diante de um mundo novo. Esse pessimismo não se sustenta, a não ser como visão subjetiva. A análise da realidade, os dados, mostram que não é assim.
Você se lembra que todo mundo imaginava que, por causa da comunicação de massa, haveria estandardização. Mas considere a televisão. Veja o número de canais que você pode escolher. Portanto, ocorre justamente o contrário. São produzidos mais programas, mais diversos, e até os programas mais críticos estão entrando com mais força na programação do que jamais entraram.
Acho que isso é uma mera visão pessimista e que não se apóia na realidade. Num primeiro momento você fica muito perplexo, porque o mundo está muito diferente do que era: "Ah, como era bom o passado". Por quê? Não vejo base para isso. O que não quer dizer que você vá ter felicidade universal. Mesmo a segmentação -existe segmentação- não significa necessariamente dispersão e impossibilidade de uma ação política que seja ordenada, eventualmente.
Acho que nós estamos num patamar muito maior de possibilidade de uma ação reflexiva. Realmente acho que esse tipo de avaliação da cultura contemporânea é uma espécie de "acesso romântico". Não é isso? Assim: "Estou com 'malaise' " (imita alguém com "malaise", mal-estar). Não existe base para um pensamento desse tipo. Alguns intelectuais ficam em casa, com "malaise" (faz uma voz de pessoa babona, imita alguém meio desfalecido). Eles olham para o mundo e dizem: "Ah, o mundo está indo para o diabo". Vamos para a rua, minha gente!
Folha - A vida política parece cada vez mais restrita ao que é dado, à "politique policière" (restrita à ordem estabelecida)...
FHC - Quando não foi?
Folha - Um exemplo, no caso do Brasil. Roberto Schwarz (FHC ri)... disse uma vez que, nos anos 50 e 60, o Brasil estava extraordinária e estranhamente inteligente...
FHC - Schwarz é um homem inteligente e pertenceu naquela época a um setor -ao mesmo que eu- que se comprazia em dizer que nós éramos muito inteligentes. Somos, eventualmente (risos). E daí? E o resto?
Folha - O país...
FHC - O país o quê? Era muito pouca gente que tinha acesso e produzia. Quando estudava na Faculdade de Filosofia (Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo), todo o segundo ano do meu curso foi em francês. Nunca falei com o Roger Bastide em outra língua que não o francês. Nós éramos dez, oito alunos. Veja a década de 30. O que o Caio Prado me contava da relação dele com o Lévi-Strauss no Brasil, ou o que o Lévi-Strauss conta nos livros dele, nos "Tristes Trópicos". Aquilo era um grupinho inteligentíssimo. E daí? Você não pode generalizar isso. Hoje tenho um pensamento oposto a isso, acho que hoje há muito mais gente com acesso à informação, acesso à cultura. Inteligência não é um bom critério...
Folha - Mas não estava me referindo à quantidade de gente inteligente, mas ao fato de que esse debate passava pela vida política do país...
FHC - (voz desconsolada) Mas hoje atravessa também, gente... O que se discute hoje no país? Acesso à terra, se está ou não está havendo aumento do salário real, se vai ter emprego, se vão aumentar nossas chances de exportar, como é que vai ser a educação...
Folha - O sr. acha que a discussão político-cultural hoje no Brasil é rica?
FHC - Acho. Acho que ela é muito mais ampla. Ela era muito restrita, se nós olharmos para a elite a qual eu pertencia. Vou dizer: "Bom, meu Deus, nós éramos melhores"? Isso não é verdade. Veja os jornais, veja os suplementos culturais dos jornais. Do seu jornal, do "Jornal do Brasil", do "Globo", do "Estado". É fantástico. Veja o teatro em São Paulo. O teatro em São Paulo hoje compete, em termos de oferta, com Nova York. Veja nas artes plásticas. O teatro, enfim, que eu vejo de vez em quando, porque a Ruth (Cardoso) gosta muito, tem uma criatividade enorme. Você sabe que o Brasil vendeu mais livros do que a França?
Folha - Não.
FHC - É, é isso que precisa ser visto. É o que digo: sai de casa e vai para a rua -não digo você, não. Observem o que está acontecendo. Isso (o Brasil) não era assim. Claro que, nos anos 40, quando eu frequentava o clubinho dos artistas, era adolescente, era fantástico ver o Oswald de Andrade, o Portinari, o Di Cavalcanti etc. Aquele pequeno grupo de 200 pessoas era uma coisa extraordinária. E havia um contato direto, você almoçava, jantava com eles, participava do congresso de literatura etc. Nesse aspecto era diferente. Mas debate hoje há aos montes.

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