São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Acabaram os mestres

DO ENVIADO ESPECIAL

Fernando Henrique Cardoso comenta, por fim, as mudanças no universo intelectual brasileiro.
Os grandes mestres do pensamento do país desse século -o historiador e economista Caio Prado Jr., o ensaísta Sérgio Buarque de Hollanda, o sociólogo Gilberto Freyre, o economista Celso Furtado e "até" o próprio FHC, segundo ele mesmo, agora dão lugar a uma produção intelectual dispersa, que ainda não realizou novas sínteses do país -o pensamento não tem mais "centro". FHC também comenta os aspectos culturais da dependência.
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Folha - O sr. acha que, o pensamento da realidade brasileira, e a criação, são hoje originais?
FHC - Não sei dizer. Houve uma mudança. Nós fomos acostumados a ter "maitres à penser" (literalmente mestres do pensamento. Grandes intelectuais de referência). É um modelo que funcionou muito na França, onde Paris prima sobre todo o resto da França, e a Sorbonne (parte da Universidade de Paris) primava sobre Paris. Havia o pessoal que estava do lado de (Jean Paul) Sartre e o pessoal que estava do lado do (Raymond) Aron (pensadores que representavam a polarização intelectual entre esquerda e direita no pós-guerra francês), para dar exemplos vagos. Nos Estados Unidos nunca foi assim. Há a sensação de que não há pensamento (do país).
Folha - Não havia centro...
FHC - Porque não havia centro. Isso gera uma certa dificuldade de ter uma imagem do que é a sociedade, de seu rumo.É mais fácil ter essa imagem numa sociedade organizada verticalmente, com menos centros produtores e com "maitres à penser". O Brasil tinha "maitres à penser", você discutia fulano, beltrano, dois, três, quatro, cinco no máximo...
Folha - Caio Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre...
FHC - Isso, depois teve Celso Furtado e, depois, até nós (o próprio FHC). Não sei se essa verticalização vai continuar no futuro. Não sei como anda a situação hoje, realmente não sei. Acho que no Brasil o processo é mais de, digamos, de "americanização" do modelo de sociedade, de dispersão de focos. Nós devemos estar numa transição de um modelo verticalizado e de "maitres à penser" para um modelo mais disperso. Com gente de muito alta qualidade.
A produção acadêmica, de teses, é grande. O problema é que dificilmente há trabalhos que sintetizem essa produção. Não sei se isso vai ser sempre assim. Não é possível fazer sínteses quando você deseja, são necessárias condições efetivas para reunir e pensar articuladamente a produção existente.
Talvez você sinta falta disso no Brasil de hoje. Talvez não exista um livro de referência para explicar a alguém de fora o que é o país. Isso é verdadeiro, mas porque o Brasil se tornou mais complexo. Não é porque ficou mais...
Folha - Burro.
FHC - Burro. Ficou mais complexo. Não quero nem dizer que não possa ocorrer uma síntese. Pode ser. Hoje você não tem nem síntese mundial, muito menos ainda. Não existe esse pensamento abrangente, nem mesmo a aspiração à teoria totalizadora.
Folha - Marx...
FHC - Ou Hegel. Nem essa aspiração. Ficou tudo muito pós-moderno, não gosto não, preferiria que fosse assim. Mas, ao não gostar, não quero confundir a minha subjetividade com o processo objetivo, o que alguns críticos desse processo fazem. Efetivamente, era melhor antes, era mais agradável, mais organizado. Isso não quer dizer que se tenha perdido a força intelectual, pois ela hoje se manifesta hoje num mundo diferente, mais complexo.
Acho até, que, se não fosse presidente da República, me debruçaria sobre essas coisas para tentar...
Folha - "Amarrar".
FHC - Isso, amarrar.
Folha - Nessa entrevista o sr. pareceu um intelectual ativo, mas distante do que está acontecendo na universidade.
FHC - Pode ser, por que não tenho condições de estar lá. Em segundo lugar, não sei se a universidade está interessada nos temas em que estou. Enfim, não posso julgar a universidade por que ela é muito diversificada. Na Universidade de São Paulo -nem posso generalizar, mesmo para uma universidade- acho que, nessas áreas (ciências sociais, economia, política), não vejo diálogo, vejo uma coisa um tanto quanto passadista, às vezes. Falta élan. Quer dizer, é preciso estar mais próximo da vida para poder fazer trabalho intelectual. Nunca fui intelectual do gênero somente "ler autores".
Folha - Um comentador...
FHC - Nunca fui. Tenho um pouco de aversão ao "comentarismo". Parece-me uma forma pobre de ser intelectual, porque falta força. Claro que é preciso ler bem e detidamente as coisas. Mas quando o sujeito tem força, vai ver o que está acontencendo na realidade, tenta explicar, tenta avançar. Senão você fica fechado no círculo, lê, relê, trelê, volta a ler, comenta uma coisa, comenta outra. Acho que aí se cai no academicismo, no mau sentido. Não estou dizendo que isso seja generalizado, não tenho nem informação para dizer isso. Mas tenho interesse no que se debate. Procuro me informar.
Folha - Mas o sr. não tem notícia especificamente do que estão fazendo.
FHC - Especificamente, não. Tenho contato com o Roberto (Schwarz), com o (José Arthur) Giannotti, nessa área, com o Leôncio (Martins Rodrigues), com o (Francisco) Weffort, com muitos intelectuais. Acho que isso não seja grave, em certos momentos. A condição de intelectual não é um contínuo.
O que é preciso no Brasil é acumular mais gente, botar mais gente junta para poder sair alguma coisa. Junto não quer dizer estar na mesma universidade, quer dizer estar interagindo. Quando você começa a ter capela intelectual, aí complica.
Folha - O sr. já escreveu que "há aspectos culturais ligados à manutenção da dependência". Como, me parece, o sr. tem uma visão tão otimista da cultura hoje, gostaria de voltar a isso. Quais são esses aspectos?
FHC - Primeiro, não tenho uma visão tão otimista...
Folha - Me pareceu, pelo que o sr. disse...
FHC - Fiz isso para contrabalançar o pessimismo. Quero ter uma posição de realismo crítico. Uma das questões importantes, culturalmente falando, da dependência, é a incapacidade de compreender o estágio que o país já atingiu. Assim, sempre se pensa a partir de um modelo que já foi proposto no passado pelo outro. "Você não pode, porque não dá." Não dá para abrir o mercado porque nós não podemos competir e nós vamos perder, não dá para deixar vir influência cultural externa porque a cultura nacional desaparece. Isso reproduz a dependência. A pretexto de buscar uma identidade que leve o país à afirmação, se reproduz uma situação de assimetria grande.

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