São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O profeta de si mesmo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde o início do Plano Real, mas sobretudo depois que selou a aliança com uma certa direita e chegou à Presidência, o intelectual e o político Fernando Henrique Cardoso vem sendo submetido a uma saraivada de críticas por parte de antigos amigos e aliados. "Vendido, traidor, oportunista, conservador", tudo isso e mais um pouco já se falou dele.
Quem tem razão, o presidente, que insiste em dizer que é ele, e não "esses bocós", quem exprime a cara do que seria hoje uma nova esquerda, ou os seus críticos, que vêem nele uma espécie de novo-rico do liberalismo? A resposta não é simples, em parte porque o próprio FHC sabe instrumentalizar a confusão em torno da sua identidade ideológica.
Numa escala menor, foi isso o que ele fez quando, no mês passado, reagiu de forma entusiasmada e mandou que chegasse à imprensa um "paper" programático escrito para uso interno do governo pelo mais liberal de seus membros, o diretor de Assuntos Internacionais do BC, Gustavo Franco.
Ninguém acredita que FHC concorde em abrir "de duas a três vezes mais" a economia, avalie que o destino de qualquer plano de metas seja a lata do lixo, nem que compre a tese de que o câmbio deva flutuar livremente de acordo com o mercado. E, no entanto, tudo isso está lá, no "paper" que FHC quis divulgar. Mas por quê?
É provável que a resposta esteja na peculiaridade da cabeça presidencial. Assim como ele acredita ser capaz de aliar-se ao PFL e continuar sendo de esquerda, colocando-se como uma espécie de poder moderador dos conflitos ideológicos do país, FHC também pretende ser o árbitro dos contrários que ele faz conviver dentro da equipe econômica. Hoje solta a rédea de Gustavo Franco, amanhã volta a dizer que o ex-ministro José Serra tem toda razão quando prega uma política industrial ativa, abertura moderada da economia etc.
Talvez por terem percebido isso, seus melhores críticos não sejam aqueles que embarcaram na balela do "esqueçam o que escrevi", mas, pelo contrário, os que procuraram ver o que ele está fazendo a partir do que escreveu.
O primeiro a considerar o problema deste ângulo foi o cientista político José Luís Fiori, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ainda durante a campanha presidencial.
Em julho de 94 Fiori publicou um artigo no Mais!, intitulado "Os Moedeiros Falsos", no qual mostrava que entre o sociólogo de ontem e o político de hoje há uma linha de coerência. Mais que isso, apontava que era exatamente nisso que estava o "x" da questão.
O trabalho acadêmico de FHC, escreve ele, "pode ser todo ele definido como uma busca incansável de nexos científicos entre os interesses e objetivos desenhados pelas situações histórico-estruturais e os caminhos possíveis que vão sendo construídos politicamente nas sociedades concretas pelos grupos sociais e suas coalizões".
Com esta perspectiva, prossegue ele, "FHC foi um dos pioneiros a investigar e concluir, já em 1963, que a burguesia industrial nacional estava impedida, por motivos estruturais, de desempenhar o papel que a ideologia nacional-populista lhe atribuía e, por isso, havia optado pela ordem, isto é, por abdicar de tentar a hegemonia plena da sociedade, satisfazendo-se com a condição de sócia menor do capitalismo ocidental".
Foi o acerto deste diagnóstico precoce que cacifou o político Fernando Henrique como líder de oposição. Mas entre o jovem senador-sociólogo que combatia o regime militar pela via institucional e o político que chegou à Presidência aliado àqueles a que se opunha, o que aconteceu?
Segundo Fiori, "uma nova opção ético-política" por parte do presidente, que "abandona o seu idealismo reformista para acompanhar a posição do seu velho objeto de estudo, o empresário brasileiro". Isto é, "depois de duas décadas de vida política, FHC abdica dos nexos científicos da história brasileira para propor-se como 'condotieri' da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, agora renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira", diz Fiori. Sua conclusão é de que "não há nenhuma incompatibilidade que impeça alguém de ser teoricamente dependentista e politicamente de direita".
Nação ou mercado?
Olhando o governo com os olhos do historiador, Luiz Felipe de Alencastro, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor do Instituto de Economia da Unicamp, diz que "no limite, pouco importa ao país que o presidente tenha escrito 'Marimbondos de Fogo' (livro de poemas de José Sarney) ou 'Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional' (doutorado de FHC). O que conta é saber para onde o seu governo nos leva".
Segundo Alencastro, "a etapa atual da globalização só trará proveito às nações socialmente coesas, politicamente costuradas por dentro. As outras vão se esgarçar, não vão ser sociedades, mas mercados". Na medida em que pretende fazer crer que a governabilidade se resume ao governismo, prossegue o historiador, o presidente contribui para "desarticular a política nacional". Exemplos disso?
"Aliança fisiológica para armar o governo, atos de vendeta contra os adversários, nomeação do senhor Francisco Weffort como desrepresentante do PT no ministério, veto à anistia dos petroleiros e confirmação à anistia a Humberto Lucena, reeleição conchavada nos meandros do Congresso etc."
Se as coisas continuarem dentro dessa lógica, conclui Alencastro, "os historiadores do futuro poderão escrever que um dos melhores críticos do descompasso entre o mercado mundial e a política nacional governou o país na época em que o primeiro esmagava de vez a segunda".

Texto Anterior: O que FHC mudou no que escreveu
Próximo Texto: A vala comum do poder
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.