São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Entre estruturas e estratégias

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Cabe-me então a escolha das armas. A minha é o florete". Com esta resposta ao examinador que o desafiava na defesa pública da sua tese de doutorado na USP, no início dos anos 60, Fernando Henrique Cardoso revelava plenamente sua concepção do combate de idéias. Atenção às diferenças finas e precisão nas estocadas: eis um estilo. Mas isso se refere ao intelectual e não ao homem político que ele é agora, dirá alguém, para lembrar que não há continuidade linear entre uma coisa e outra. De fato, a lógica da ação política não é a da análise refletida dos fatos, nem a intervenção no debate público é da mesma ordem que promover a deliberação e implementar seus resultados.
Nesse sentido é preciso ter cautela ao reclamar do intelectual ocupante de cargo político coerência entre o que escreveu e o que faz, por mais que ambas as condições tenham a ver com a esfera pública. A coerência pode ser exigida quanto aos princípios que norteiam as posições assumidas, mas não quanto aos seus conteúdos pontuais. Com o estilo é diferente. Aqui o modo de enfrentar os problemas numa área pode dizer muito sobre o modo de agir em outras. Prestemos atenção, portanto, no intelectual Fernando Henrique. Talvez isso nos ajude a entender o político.
Vejamos uma passagem do seu livro editado em 1964, sobre o empresário industrial e o desenvolvimento econômico, que representa o ponto culminante da primeira etapa da sua trajetória intelectual (se considerarmos a segunda etapa a que se iniciou no Chile após 64, na qual desenvolveu sua contribuição à chamada teoria da dependência, e a terceira etapa a que se abre no retorno ao Brasil, quando seu trabalho se desdobra em duas frentes, uma voltada para a temática do desenvolvimento em escala global, e a outra, mais diretamente política, voltada para a análise do Brasil, nos termos do título de seu livro de 1976 sobre "autoritarismo e democratização").
Nesse trabalho os resultados de uma ampla pesquisa são interpretados no sentido de que o empresário brasileiro não reunia condições para desempenhar o papel reservado por certas correntes políticas à "burguesia nacional", até pelo contrário: "Não assumindo as responsabilidades políticas de classe economicamente dominante, a burguesia industrial torna-se em parte instrumento da dominação política dos grupos tradicionais" e corre o risco de "perder as chances históricas de exercício pleno da dominação de classe". Mas a passagem que nos interessa é outra, mais longa, quando sustenta que "a dinâmica do desenvolvimento deve ser vista em termos de um movimento social", e que "entre um momento e outro da história de uma sociedade há a mediação de uma luta, que reflete a tensão entre interesses e objetivos sociais diversos num duplo sentido: altera-se a posição da sociedade particular no conjunto das sociedades e modifica-se internamente a posição das camadas da sociedade que se está desenvolvendo. Por isso mesmo, não apenas os movimentos sociais que exprimem estas relações são o resultado de uma situação objetiva como imprimem no curso do processo de desenvolvimento a marca dos interesses e propósitos que os animam. Estrutura e estratégia não guardam entre si relações de paralelismo: interpenetram-se". Em consequência, a explicação da dinâmica social exige examinar simultaneamente "tanto as possibilidades estruturais que se abrem para os movimentos sociais como as ideologias, motivações, estratégias e propósitos que desencadeiam e orientam socialmente a ação". Até porque as formas concretas que ela assume "constroem-se, como invenção histórica, a partir de movimentos sociais concretos".
Estruturas (ou seja, condições para a ação) e estratégias (ou seja, orientações para a ação em confronto com outras) interpenetram-se e disso resultam (ou podem resultar) invenções históricas. Impossível não perceber, aqui, o sutil jogo que se estabelece entre condicionantes e ações, entre determinação objetiva e vontade, entre o possível e o efetivo, entre o limite e a invenção. Sutil demais, dirá o meu taciturno interlocutor imaginário. Tão sutil que fica difícil distinguir o provável do meramente possível, a invenção da concretude dos fatos. A ênfase no confronto de interesses e no conflito é abrandada pela busca obstinada das relações mais finas.
No final da análise, fica a dúvida. Está-se assinalando os limites históricos e estruturais à constituição do empresariado como classe, ou se está apontando para a dimensão política na qual ela pode se organizar, ou o olhar está dirigido para alguma alternativa como classe dominante -enfim, como ler o livro para além do encanto com a finura das análises? Para Fernando Henrique, o embaraço se resolve de uma maneira muito dele: uma frase de efeito como fecho. "No limite a pergunta será, então, subcapitalismo ou socialismo?". Questão retórica, até porque a pergunta que a antecede é sobre a capacidade das massas urbanas e dos grupos populares para "levar mais adiante a modernização política e o processo de desenvolvimento econômico do país". Mais valeria propor a alternativa em termos de subcapitalismo ou capitalismo. Isso nos privaria do "gran finale", mas deixaria mais claros os problemas. Permitiria também ficar mais atento a minúcias preciosas, como os germes da caracterização da dependência que uma leitura retrospectiva permite detectar na passagem citada.
A formulação é desleal, mas a pergunta cabe: em quem, afinal, está apostando Fernando Henrique ao exibir as insuficiências políticas de uma classe burguesa incipiente e ao mostrar que a organização política de outras classes é só matéria para conjecturas? Quem é o herói dessa história?
A resposta é que o centro das preocupações não está na identificação de quem é capaz de organização e ação política eficaz naquele contexto, nem está no traçado dos limites a essas ações e à constituição dos seus agentes. A atenção se concentra naquilo para que tudo isso aponta. Mais do que o desenvolvimento (econômico) está em jogo a modernização, política sobretudo. É este o grande tema que aqui se introduz e que nunca mais abandonará as preocupações, na prática acadêmica e na política, de Fernando Henrique.
A finura das análises, a colocação em primeiro plano de figuras que na realidade são acessórias e a tirada retórica no final só servem para dificultar a visão do ponto essencial. Mas ele está lá, e o autor convida com um piscar de olhos cúmplice quem quiser vê-lo. A questão não é tanto qual grupo social assumirá a tarefa de, investido do poder político, realizar essa modernização (abandonando-se a idéia de que isso possa ser feito pelo próprio Estado). Não importam tanto os agentes, mas o objetivo; porque este, uma vez alcançado, permitirá reordenar os agentes. A solução do problema torna-se mais difícil quando os agentes possíveis dessa modernização estão tolhidos pela sua condição de instrumentos, em parte, da dominação política dos grupos tradicionais.
Ao conduzir suas análises por esses caminhos, Fernando Henrique se distingue de dois grandes autores que lhe servem como referência constante. Diferencia-se do seu mestre Florestan Fernandes, para quem a questão básica consiste em buscar alternativas para a realização das tarefas que a frustrada revolução burguesa deixou abertas e para as formas perversas de dominação que esse malogro histórico trouxe consigo. E também se diferencia de Celso Furtado, para quem o jogo entre oportunidade histórica e ações dos grupos no poder se dá mais por uma sequência de "atos falhos", em que se busca uma coisa e se atinge outra (Fernando Henrique usa, com referência a isso, a saborosa expressão "jogo de cabra-cega"). A revolução burguesa não se fez, mas não há outra à vista. Em consequência, o par histórico decisivo não é reforma ou revolução (como ainda se dizia quando aquele livro foi escrito), mas, cada vez mais, é: reformas e modernização.
Além de distinguir a ciência da política em termos de que o cientista não pode fazer concessões e o político tem que fazê-las, o velho Max Weber punha nos ombros do grande estadista, capaz de assumir a tarefa da condução da sociedade, um pesado ônus. Não só lhe cabe a responsabilidade pelas suas decisões, como também incumbe a ele definir perante quem deverá responder, no futuro, pelas consequências do que fez. Considerando-se a sua formação intelectual, o seu estilo e as condições (a interpenetração singular de estruturas e estratégias) do momento presente, quais são os interlocutores históricos de Fernando Henrique Cardoso? A quem ele decidirá dever respostas?

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