São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Abstrato, figurativo e assim por diante

CLEMENT GREENBERG

Tendemos a supor que o figurativo enquanto tal é superior ao não-figurativo enquanto tal; que, em igualdade de condições, uma obra de pintura ou escultura que exiba uma imagem reconhecível é sempre preferível a uma que não o faça. A arte abstrata é considerada um sintoma de decadência cultural e até mesmo moral, enquanto a esperança de um "retorno à natureza" é tida por aqueles que esperam como a esperança de um retorno à sanidade. Mesmo alguns dos apologistas da arte abstrata, defendendo-se sob a alegação de que uma era de desintegração deve produzir uma arte de desintegração, admitem mais ou menos a inferioridade inerente do não-figurativo. E aqueles outros apologistas que reivindicam, com ou sem razão, que a arte abstrata nunca é inteiramente abstrata, estão na verdade fazendo a mesma concessão. Uma falácia geralmente é respondida com outra; assim, há os fanáticos da arte abstrata que invertem o argumento e reivindicam para o não-figurativo a mesma virtude absoluta, intrínseca e superior que normalmente é atribuída ao figurativo.
A arte é uma questão estritamente de experiência, não de princípios, e o que conta em primeiro e em último lugar na arte é a qualidade; todas as outras coisas são secundárias. Ninguém conseguiu ainda demonstrar que o figurativo enquanto tal acrescenta ou retira algo do mérito de uma pintura ou estátua. A presença ou ausência de uma imagem reconhecível não tem nada mais a ver com o valor na pintura ou na escultura do que a presença ou ausência de um "libretto" tem a ver com o valor da música. Tomados em si mesmos, nenhum de seus aspectos em particular decide a qualidade de uma obra de arte como um todo. Na pintura ou na escultura isso é tão verdadeiro no que concerne à representação como é no que diz respeito a escala, cor, qualidade da pintura, motivo etc. etc.
É certo que uma imagem reconhecível pode acrescentar significado conceitual a uma pintura, mas a fusão do significado conceitual com o significado estético não afeta a qualidade. O fato de que uma pintura nos dê coisas para identificar, assim como um complexo de formas e cores para observar, não significa necessariamente que nos dê mais enquanto "arte". O mais e o menos em arte não dependem de quantas variedades de significado estão presentes, mas da intensidade e profundidade desses significados, sejam eles poucos ou muitos, enquanto estão presentes. E nós não podemos dizer, antes do evento -antes da experiência dele-, se a adição ou subtração de significado conceitual, ou de qualquer outro fator dado, aumentará ou diminuirá o sentido estético de uma obra de arte. (...) O comentário explícito sobre um evento histórico oferecido em "Guernica" de Picasso não a torna necessariamente uma obra melhor ou mais rica do que uma pintura absolutamente "não-objetiva" de Mondrian. (...)
Neste ponto, entretanto, sinto-me livre para voltar atrás e dizer coisas que são perigosamente semelhantes àquelas as quais acabei de negar a qualquer um o direito de dizer. Mas direi o que tenho de dizer somente sobre a arte abstrata que já conheço, e não sobre a arte abstrata em princípio.
A arte escultórica e pictórica "autônoma", enquanto distinta da decoração, era até pouco tempo identificada inteiramente com o representativo, o figurativo, o descritivo. Agora pode-se justificadamente perguntar se, em vista do que a pintura e a escultura conseguiram no passado, elas não correm o risco de um certo empobrecimento ao eliminar o representativo, o figurativo, o descritivo. Como já disse, o não-figurativo não é necessariamente inferior ao figurativo -mas, ainda assim, ele não é muito pouco preparado pelas expectativas herdadas, habituais, automáticas com que nos aproximamos de um objeto que nossa sociedade concorda em chamar de pintura ou de estátua? Por essa razão, não é possível que mesmo a melhor pintura abstrata ainda nos deixe um pouco insatisfeitos?
A experiência, e somente a experiência, me diz que a pintura e a escultura figurativas raramente atingiram mais do que uma qualidade menor nos últimos anos, e que a grande qualidade é atraída cada vez mais para o não-figurativo. Não que a maior parte da arte abstrata recente seja grande; ao contrário, é ruim; mas isso ainda não impede que o melhor dela seja o melhor da arte de nosso tempo. E se o abstrato for realmente empobrecedor, então esse empobrecimento agora se tornou necessário para a arte importante.
Mas será, por outro lado, que a nossa insatisfação com a arte abstrata -se é que se trata de uma insatisfação- não tem sua fonte não tanto em nossa nostalgia pelo figurativo, mas no fato relativamente simples de que nós não conseguimos nos equiparar ao passado, não importa como pintemos ou esculpamos? Será que não é a arte em geral que está em declínio? Mas, se isso for verdade, os opositores dogmáticos da arte abstrata estariam certos apenas ocasionalmente, e sobre bases empíricas, não teóricas ou de princípio; eles estariam certos não porque o abstrato em arte é invariavelmente um sintoma de declínio, mas simplesmente porque ele acompanha o declínio neste momento da história da arte, e estariam certos somente neste momento.
A resposta pode ser ainda mais simples, entretanto -e ao mesmo tempo mais complicada. Pode ser que ainda não consigamos enxergar com distanciamento suficiente a arte de nossos dias; que a fonte real e fundamental da insatisfação que possamos sentir com a pintura abstrata se encontre nos problemas normais postos por uma nova "linguagem".
De Giotto a Courbet, a primeira tarefa do pintor era estabelecer uma ilusão de espaço tridimensional sobre uma superfície plana. Olhava-se através desta superfície como se olharia através de um proscênio dentro de um palco. O modernismo tornou esse palco cada vez mais raso até que, agora, seu pano de fundo passou a coincidir com sua cortina, que agora se tornou tudo que restou ao pintor para trabalhar sobre. Não importa com que riqueza e variedade ele grave e dobre esta cortina, e mesmo que ele ainda delineie imagens reconhecíveis sobre ela, nós podemos ter uma certa sensação de perda. Não é tanto a distorção ou mesmo a ausência de imagens que percebemos nessa pintura sobre cortina, mas sim a eliminação daqueles direitos espaciais que as imagens costumavam possuir quando o pintor era obrigado a criar uma ilusão do mesmo tipo de espaço daquele em que nossos corpos se movimentam. Essa ilusão espacial, ou antes a sensação dessa ilusão, é algo que talvez nos faça mais falta do que as imagens que costumavam preenchê-la.
A pintura agora se tornou uma entidade que pertence à mesma ordem espacial a que pertencem nossos corpos; não é mais o veículo de um equivalente imaginado dessa ordem. O espaço pictórico perdeu seu "interior" e tornou-se inteiramente "exterior". O espectador não pode mais escapar para dentro do espaço pictórico a partir do espaço em que ele mesmo se encontra. Se o espaço pictórico chega a enganar seu olho, é por meio de meios óticos e não pictóricos: por meio de relações de cor e forma amplamente divorciadas de conotações descritivas, e normalmente por meio de manipulações em que a parte superior e a parte inferior, assim como a frente e o fundo, tornam-se intercambiáveis. A pintura abstrata não apenas parece oferecer um tipo de experiência mais restrita, mais física e menos imaginativa do que a pintura ilusionista, mas parece fazê-lo sem os substantivos e os verbos transitivos, por assim dizer, da linguagem da pintura. O olho tem dificuldade em localizar a ênfase central e é compelido a tratar mais diretamente o todo da superfície como um único campo indiferenciado de interesse, e este, por sua vez, nos compele a sentir e julgar a pintura mais imediatamente em termos de sua unidade geral. A pintura figurativa aparentemente (embora só aparentemente) não exige uma compressão de nossas reações em um âmbito tão estreito. (...)
Devemos continuar a lamentar a ilusão tridimensional na pintura? Talvez não. Os especialistas do futuro talvez prefiram o tipo mais literal de espaço pictórico. Eles podem até considerar os antigos mestres carentes de presença física, de corporeidade. Já houve reversões de gosto desse tipo anteriormente. Os especialistas do futuro talvez sejam mais sensíveis do que nós às dimensões imaginativas e às sugestões da literalidade, e encontrem na concretude das relações de cor e forma mais "interesse humano" do que nas referências extrapictóricas da arte ilusionista de antigamente. Eles talvez considerem que a ilusão de profundidade e volume foi esteticamente legítima "basicamente" porque capacitou e encorajou o artista a organizar essas infinitas sutilezas de luz e sombra, de translucidez e transparência, em entidades efetivamente pictóricas. Talvez eles digam que valia a pena imitar a natureza porque ela oferecia, sobretudo, uma tal riqueza de cores e formas, e de intricações de cor e forma, que nenhum pintor, isolado em sua arte, poderia jamais ter inventado. Ao mesmo tempo, estes especialistas do futuro talvez consigam, em seu discurso, distinguir e nomear mais aspectos de qualidade nos antigos mestres, assim como na arte abstrata, do que nós. E ao fazer estas coisas eles talvez encontrem mais bases comuns entre os antigos mestres e a arte abstrata do que nós próprios já conseguimos reconhecer.
Espero que não entendam que estou dizendo que um conhecimento mais esclarecido sustentará que o "quê", enquanto distinto do "como", Rembrandt pintou é uma questão sem importância. O fato de que ele tenha acumulado nos narizes e testas de seus retratos, e não em seus ouvidos, as cores mais suculentas de sua última maneira tem muito a ver com os resultados estéticos que ele obteve. Mas ainda não podemos dizer por que ou como. Na verdade, minha esperança é que uma aceitação menos qualificada da importância de fatores puramente abstratos ou formais na arte pictórica irá abrir caminho a uma compreensão mais clara do valor da ilustração enquanto tal -um valor que eu, também, estou convencido que é incontestável. Simplesmente não se trata de um valor que é realizado mediante, ou enquanto, "acréscimo".

Tradução de Otacílio Nunes.

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