São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Para lembrar o que ele escreveu

DO ENVIADO ESPECIAL

Na primeira parte da entrevista, FHC faz uma história da formação de suas idéias. O pano de fundo de sua discussão é como interpretar a história brasileira com conceitos elaborados por Karl Marx ou Max Weber, para entender a história do capitalismo na Europa.
No Brasil havia uma combinação atípica de capitalismo e escravidão. O país estava integrado ao sistema capitalista mundial -seus produtos eram produzidos, e competiam, no mercado mundial. No entanto, não havia trabalhadores livres, o proletariado do capitalismo europeu -o esquema de classes era diferente.
Para Marx, as grandes mudanças históricas se dão por causa da luta de classes. Como o esquema de "classes" brasileiro fugia desse modelo histórico básico, era preciso reinterpretá-lo para poder entender a história brasileira.
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Folha - Em seus estudos de dependência, a análise do conflito político entre as classes de um país é fundamental para saber como um país como o Brasil, periférico, se relaciona com o centro do capitalismo mundial. Num discurso de 96, o sr. problematizou alguns desses conceitos, como o de classe. Mudou a análise da dependência?
Fernando Henrique Cardoso - Primeiro vamos remontar um pouco mais longe. Só é possível entender o que eu disse sobre dependência se você remontar à análise da escravidão, o que ninguém faz. Pouca gente lê (o livro "Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional", 1962). Está aí o miolo do debate teórico. A intenção era entender o sistema escravocrata brasileiro e utilizar uma ferramenta sociológica que é dúplice, weberiana e marxista.
Folha - Como várias coisas que o sr. escreveu...
Cardoso - O sistema de produção escravocrata no Brasil era uma produção aberta para o mundo. Era um regime de latifúndio, baseado na escravidão, mas integrado à expansão do capitalismo mercantil, um regime de competição internacional. A compreensão disso tudo -a explicação disso nos termos da teoria tradicional, Marx, Lukács, Weber- era muito confusa. Como é que você iria explicar o problema da relação "de classes" numa sociedade que não é de classes, que era escravocrata?
Como o escravo vai negar a ordem escravocrata (atuar para superá-la)? O escravo não é classe universal (como o proletariado). Ele é um desvão da história. Essa idéia sempre foi muito presente na minha cabeça. Em certos momentos, certas categorias sociais viram desvão da história. Os excluídos não são necessariamente portadores do futuro, como pensa a esquerda vulgar. O escravo era excluído e não portador do futuro. O que ele poderia aspirar era à mesma condição do senhor -ser livre, formalmente. Isto é, não ter a mesma posição estrutural, mas ser livre. A escravidão não poderia ser explicada sem referência à expansão do grande capitalismo. Mas a história do Brasil não é uma cópia do que está acontecendo lá. Há uma singularidade. Por outro lado, ela não tem leis próprias: é derivada, subordinada e dependente. Do ponto de vista teórico era o mesmo mecanismo que usei depois para discutir a dependência.
Folha - Mas a articulação disso com as análises de classe...
Cardoso - O modelo era o mesmo. No fundo, era a mesma questão do meu estudo sobre o empresariado. Mas então houve a influência do (Alain) Touraine. E, claro, havia nossa leitura não-dogmática de Marx, dez anos antes da moda francesa da marxologia.
Folha - No seminário do "Capital".
Cardoso - É. Tentávamos entender o processo por meio da metodologia dialética. No fim dos anos 50, começo dos 60, a esquerda teórica pensava que estávamos amadurecendo para chegar um dia a ter uma sociedade européia.
Folha - Com as classes todas, desenvolvimento autônomo...
Cardoso - ...autônomo, classe trabalhadora com seu papel, empresariado com seu papel etc. No final dos anos 50, começo dos 60, o Touraine, com muita generosidade, como é particular dele, nos criticava: nós não pensávamos a questão do Estado e achávamos que repetiríamos a história da Europa. Quando eu fui estudar o empresariado (1962), a teoria dominante à esquerda, do Partido Comunista, não dos outros, e dos nacionalistas era de que havia a necessidade de uma burguesia nacional, capaz de fazer a revolução burguesa, e, ao mesmo tempo, um proletariado revolucionário capaz de se opor a isso mais adiante.
Na pesquisa não vi nada disso. A teoria da época dizia que o latifúndio atrasado apoiado pelo imperialismo (o poder dos países capitalistas estrangeiros avançados) se opõe à industrialização do país. Em "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil" (1964), você vê o contrário. Já começava a haver uma associação do empresariado nacional com o capital externo nessa época. Via-se que ali não era possível analisar as relações internacionais de subordinação sem estudar o conflito político interno. Na época, eu dizia: o Brasil está condenado a uma espécie de subdesenvolvimento...
Folha - O sr. escreveu "subcapitalismo ou socialismo".
Cardoso - Isso. Era minha visão: nós não vamos fazer a "grande revolução burguesa" (não vai haver desenvolvimento nacional).
A análise da dependência, que é a parte seguinte, também já está implícita nesse livro do empresariado. Lá no Chile, onde escrevi "Dependência e Desenvolvimento na América Latina (com Enzo Faletto, em 1967), continuava o debate sobre a luta contra o imperialismo e o latifúndio -que era predominante na esquerda. Toda a luta no Brasil era essa -Brizola, Jango, UNE, uma coisa sem sentido.
Para nós, no entanto, houvera uma transformação. O país de fato se industrializava. Antes você tinha um capitalismo internacional que não industrializava a periferia -porque não interessava-, mas agora ele a industrializa. O mercado interno passa a ser importante para as empresas estrangeiras que vêm para cá.
Folha - E a Cepal?
Cardoso - Nós nos opúnhamos também à explicação da Cepal. E também ao reducionismo vulgar do marxismo, que (Ernesto) Guevara levou ao extremo, ao qual me opus violentamente e que predominou na esquerda. O (cientista político da USP) Emir Sader, disse num artigo que não influenciei a esquerda. É verdade, e esse pessoal errou tudo, a meu ver. Agora me cobram porque eu não estava no caminho errado. É fantástico.
A Cepal sabia do processo de transformação. Do ponto de vista econômico. O (Raúl) Prebisch (economista argentino, secretário executivo da Comissão Econômica para a América Latina da ONU) entendeu que a chave do crescimento é a produtividade. Ele e o Gustavo Franco (risos) -isso é Marx puro. O Prebisch entendeu a necessidade de capital externo e do papel do Estado, da substituição de importações. Economicamente, para a época, era adequado. Era preciso fazer e realmente foi feito. Mas eles não viam a relação política, a análise da relação de classes. Não podiam ver, pois um órgão da ONU não pode entrar em política.
Como não viam as relações de classe, não viam como se dava o novo processo de desenvolvimento, o que a teoria da dependência fez. Eles diziam que haveria estagnação econômica -a (Maria da) Conceição Tavares, o Celso Furtado etc. Era bobagem. Iria haver (1967, começo do "milagre econômico") um ciclo de expansão, com capital externo. Não era mais "socialismo ou estagnação".
Folha - O "desenvolvimento do subdesenvolvimento"...
Cardoso - Isso. Estava havendo desenvolvimento mesmo, e ele dependia sobretudo de finanças e de tecnologia. Era o tripé: Estado, empresa estrangeira e empresa privada nacional, associados. Isso muda a sociedade.
Folha - Como foi o salto entre subcapitalismo e desenvolvimento dependente?
Cardoso - Quando falei do subcapitalismo não tinha essa visão de que haveria desenvolvimento: para mim, ele seria castrado. No livro "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil" existia ainda o pressuposto da esquerda tradicional: sem autonomia nacional não existe desenvolvimento capitalista.
Folha - Haveria um problema político, as "massas" criariam a condição do desenvolvimento, conduziriam o processo etc.
Cardoso - Exatamente. Não está formulado assim, pois sempre fui mais nuançado, mas está presente. Mas em "Dependência e Desenvolvimento" está menos presente. E nos trabalhos posteriores, sobre desenvolvimento associado, menos ainda.
Folha - Nessas transições todas de suas análises a noção de classe do marxismo está mais ou menos ali presente...
Cardoso - Sim. E continua, com algumas mudanças. Como há o processo de massificação e há um processo de fragmentação da sociedade contemporânea, fica difícil a agregação da vontade política baseada na classe histórica fundamental. Paulatinamente, nos anos 70, mas mais tarde, nos 80, você tem a substituição, pelos próprios marxistas, da teoria clássica de classe pela idéia de sociedade civil. Não é que não exista classe. Passa a ser outra coisa o embate. Você vê que progressivamente os sindicatos não são mais contra os empresários, são contra o governo.
Mas, ainda na sua pergunta, não é que eu tenha mudado, mudou o mundo. Você tem uma enorme fragmentação da sociedade. Em função do quê? Do modo de produzir. E aí eu sou clássico. Eu disse isso no México. Isso muda o modo de atuação política.

Continua à pág. 5-5

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