São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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Previdência: nem todos pagam sua conta

REINHOLD STEPHANES

Em quase dois anos de debate sobre a reforma da Previdência, discute-se muito o direito e não a matemática que mantém os diversos regimes existentes no país. Os governos e os legisladores conduziram o sistema, através de décadas, sem se preocupar em saber de onde sairiam os recursos necessários à sua manutenção. Prova disso é que as leis foram elaboradas no sentido de criar e conceder benefícios, mas sem definir adequadamente quem pagaria a conta.
Constatamos que, ao contrário do que é correto, quem paga essa conta não são os que se aposentam cedo -por tempo de serviço- e com renda mais alta. Ou seja, o ônus recai exatamente naqueles que se aposentam mais tarde -por idade- e ganham menos. Os trabalhadores de renda salarial mais baixa estão subsidiando os benefícios dos que ocupam as classes mais altas. Apenas 13 de cada 100 pessoas se beneficiam da aposentadoria por tempo de serviço. Em contrapartida, essa minoria gasta aproximadamente 32% da receita previdenciária. Quando essa análise é feita nos chamados regimes especiais, a questão é mais grave e injusta. Repito, nos regimes especiais é muitas vezes até imoral.
Vejamos alguns exemplos de como determinados segmentos ignoram a conta previdenciária: hoje, os maiores devedores da Previdência Social são os órgãos públicos. Somente a Rede Ferroviária Federal (RFFSA) nos deve mais de R$ 1,3 bilhão, e, no entanto, não tem sido negado a seus funcionários o direito de obter a aposentadoria, muitas delas de caráter especial. Somente agora, com a privatização, a Rede começa a liquidar seu débito. Outro caso é o da ex-Legião Brasileira de Assistência, que foi extinta, mas não desapareceu com sua dívida de R$ 55 milhões. Nessa lista estão ainda a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com um débito de R$ 266 milhões; a Eletronorte, com R$ 75 milhões; a Companhia Docas do Rio de Janeiro, com R$ 50 milhões, e muitos outros. Quem vai pagar a conta por seus funcionários?
A contribuição dos clubes de futebol também ilustra a falta de compensação atuarial em relação à Previdência. Desde 1993, a legislação permite que os clubes contribuam com 5% da renda dos jogos. No entanto, o faturamento desse segmento está mais vinculado hoje ao patrocínio e ao direito de transmissão para as emissoras de TV, principalmente a cabo. Isso significa que a contribuição dos clubes ao INSS equivale a um terço daquilo com que contribuem as demais empresas, e os benefícios concedidos a seus funcionários são subsidiados por toda a sociedade. Seus futuros aposentados não estão pagando suas contas.
A área rural, onde uma aposentadoria se dá em média aos 60 anos, traz outro exemplo. A grande maioria dos trabalhadores rurais não contribuiu com a Previdência, mas tem seus direitos assegurados constitucionalmente. Se não houve contribuição, era justo que o custeio fosse pago pela Assistência Social (com recursos da sociedade). Entretanto, está sendo assumido pelo contribuinte que pagou para se aposentar e em faixa mais elevada, o que não consegue.
Nessa descompensação atuarial estão incluídos também os trabalhadores que se aposentam proporcionalmente, em condições especiais -como os professores- e os autônomos. A contribuição deles não paga suas futuras aposentadorias. No caso dos professores, a mulher que se aposenta aos 25 anos de serviço recebe um subsídio de 53%, pois contribuiu por menos tempo e receberá o benefício por maior número de anos. E há ainda os 600 mil funcionários de entidades filantrópicas, de acordo com a Relação Anual de Informações Sociais, cuja conta deveria ser dividida por seus empregadores, mas estes estão isentos.
A Previdência é sempre a última conta a ser paga. Somente na rede hospitalar há mais de 6.000 devedores. A alegação comum é que também não recebem o repasse do Sistema Único de Saúde (SUS). Por outro lado, tramitam na Justiça 400 mil ações de cobrança, cujo tempo médio entre a notificação e a execução fiscal é de mais de cinco anos. Desse total, 200 mil referem-se a valores tão baixos que não compensa a cobrança. O retorno da outra metade demorará pelo menos 20 anos, cumprindo-se todos procedimentos judiciais. Sem falar na falta de mecanismos para forçar os órgãos públicos e autarquias a pagarem suas dívidas. Eles são protegidos por instrumentos legais, como o que impede a penhora de bens. Com os Estados e os municípios ainda é possível bloquear o repasse de recursos federais e tentar um parcelamento dos débitos.
Há um elenco de razões que justificam a reforma de todo o sistema previdenciário e não apenas a sobrevivência do regime INSS. Os exemplos citados aqui mostram a falta de compensação atuarial e, como a conta previdenciária vem sendo protelada há anos, um comportamento quase generalizado. Os números, no entanto, alertam para o futuro. Não podemos esperar que se esgotem os recursos para adotar as medidas necessárias. A boa doutrina exige que se obedeçam os princípios da solidariedade e da equidade.

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