São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 1996
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Viagem pelos mistérios da criação humana

FERNANDO GABEIRA

"Discover", uma revista especializada em ciência, acaba de lançar um número dedicado ao fenômeno da criação. Há artigos sobre momentos criadores de Einstein e Kafka, uma investigação sobre a loucura e criatividade, em torno do suicídio de Virginia Wolf e um ensaio de Sthepen Jay Gould, intitulado "Criando os Criadores".
O trabalho de Gould é a peça de resistência, uma reflexão sobre a tese evolucionista de Darwin se integrando sobre os caminhos que a cega evolução trilhou para criar estas coisas tão esplêndidas, que somos nós mesmos.
Os mais fortes sobrevivem. Mas sobrevivem porque têm uma grande capacidade de adaptação ao meio ambiente em constante mudança. Até aí, Gould está com Darwin. Mas acha que a evolução, criando criaturas adaptadas, em série ascendente, jamais chegaria ao ser humano.
Manifestações de vida perfeitamente adaptadas, com todas as suas partes cumprindo funções bem definidas, eis uma visão que acaba conduzindo ao impasse. Para que dêem o salto para cima é preciso que tenham alguns atributos que negam a perfeição.
Onde está a criatividade da evolução? Gould localiza a resposta no que chama de flexibilidade e potencial latente. É preciso uma mudança esperta, e também uma certa redundância.
Ele examina o pavão com sua cauda maravilhosa e vê nela uma das mais preciosas vantagens darwinianas. A cauda permite que o pavão tenha mais acesso sexual às fêmeas e, com isto, transportar seus gens para futuras gerações.
Mas o que mais o pavão poderia fazer com esse transtorno, uma vez que a mudança é a única constante em nossa evolução?
Qualquer adaptação, por mais singular e elaborada que seja, apresenta este paradoxo. Daí o esforço de Gould para explicar o que se passa, recorrendo à idéia de uma mudança esperta, uma espécie de guinada numa direção imprevisível, verdadeiro momento de criação.
Ele acha que esta guinada não se dá no vazio. É necessário uma certa redundância, células duplicadas que acabam se destacando para cumprir uma nova função. Segundo ele, entende-se melhor a evolução comprando uma sandália no mercado de Nairobi, pois ela é toda feita de produtos reciclados, inúteis na sua forma anterior.
Interessante notar como algumas das idéias de Gould acabam convergindo com livro de 750 páginas que Arthur Koestler dedicou ao tema, no livro "o Ato de Criação".
Koestler parte do humor para chegar às grandes descobertas científicas e localiza na genuína criação que nos faz gargalhar uma guinada imprevisível no curso de um acontecimento.
Cita um exemplo colhido em Freud:
"Chamfort conta uma história de um marquês da corte de Luís 14 que, ao encontrar sua mulher na cama com um arcebispo, caminha calmamente para a janela e faz vários gestos abençoando as pessoas que passam pela rua.
'O que está fazendo?', pergunta a mulher angustiada.
'O arcebispo está cumprindo minhas funções, eu estou cumprindo as dele'."
Esse resultado inesperado rompe a tensão da narrativa, relaxa e provoca o riso.
Da minha parte, sempre me coloquei uma questão: duas pessoas debaixo de uma árvore, cai a maçã, por que uma delas diz apenas caiu a maçã e a outra concebe a lei da gravidade?
Em Gould isto talvez se chame potencial latente, em Koestler é dissecado a partir do acúmulo de conhecimentos de Newton, sua chegada ao limiar da descoberta através do esgotamento do que se conhecia sobre o tema.
Para qualquer outra pessoa que não tivesse a trajetória intelectual de Newton, era apenas a maçã caindo da árvore.
Claro que são apenas alguns caminhos da criação, do ato que rompe num estalo a casca do real, empurrando-o para um novo patamar.
O fato de existirem muitos caminhos e não poder sintetizá-los aqui me autorizam, no entanto, a afirmar que não é preciso conhecê-los conscientemente para chegar à criação.
Aliás esta é a tese de Koestler depois de dedicar parte de sua vida a estudar o tema. Ele afirma que todas as criaturas possuem a capacidade de criar, mas ela, às vezes, é suprimida pelas rotinas automáticas do pensamento e da prática que dominam suas vidas.
E para confirmar que não é preciso saber tudo sobre a criação, Koestler sugere que somos mais criativos quando o pensamento racional está suspenso, por exemplo nos sonhos e em estados de transe. Nesses momentos, a mente é capaz de receber a inspiração e o lampejo interior.
Portanto, para simplificar: relaxe e crie.

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