São Paulo, quarta-feira, 16 de outubro de 1996
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Quem vai dançar?

ANTONIO DELFIM NETTO

O caderno Mais! da Folha de 13 de outubro prestou um enorme serviço aos brasileiros. Todos tivemos a alegria de ver o nosso presidente acertando suas contas com o passado e admirar as suas qualidades de esgrimista, desenvolvendo sedutora retórica.
Numa das respostas ao cuidadoso e bem equipado entrevistador, sr. Vinicius Torres Freire, ele disse que "há setores do empresariado que estão chiando, porque estão perdendo. Você (o sr. Vinicius) falou da indústria têxtil. Uma parte vai dançar, outra não vai. Isso não quer dizer que o Estado na sua função reguladora, digamos, até certo ponto uniformizadora, não tenha que prestar atenção aos interesses que não têm força".
O interessante nessa resposta não é o fato de que "alguns vão dançar e outros não", mas quem determina quais serão os expulsos do baile! A resposta do sociólogo-presidente é cuidadosa ("o Estado, na sua função reguladora..."), mas a do presidente-sociólogo revela um estranho poder divino.
Se a resposta for que é o "mercado" quem determina quem "vai dançar", nada está resolvido, porque cabe a pergunta "quem faz o mercado?".
Se a resposta for o "Estado", temos aí o grande demiurgo da realidade. Se a resposta for "ninguém", porque o mercado seria produto de uma ordem natural endógena que gera ao mesmo tempo eficiência e justiça, estamos no pleno reino da fantasia, que dificilmente satisfaria a um admirador de Marx e Weber.
A inteligente e aparentemente ingênua questão colocada pelo sr. Vinicius descobre toda a trama: não se trata de defender o "protecionismo" (salvar todos do baile). O de que se trata é dar a cada um dos bailarinos a oportunidade de mostrar o seu tango! Pois bem, é isso que o Estado ou o mercado, seja lá quem for, não está fazendo.
O Estado construiu um mercado viezado contra os dançarinos nacionais e tenta justificar-se em nome de um "mercado abstrato" que seria obra do Espírito Santo.
Por melhores que sejam as intenções do sr. presidente, ele não pode ignorar que é o seu poder que determina quem vai viver e quem vai morrer. Como é possível imaginar que: 1) com o câmbio sobrevalorizado; 2) com um sistema tarifário irresponsável e mutante e 3) com a maior taxa real de juros do mundo e ausência de crédito (condições que são determinadas arbitrariamente pelo governo) possa se falar no "mercado" como selecionador dos vencedores?
O que os empresários brasileiros deveriam exigir com maior vigor não é o "protecionismo", que de vez em quando lhes dá saudades. Mas igualdade de condições competitivas.
O que é isso, afinal? Nada mais do que o equilíbrio orçamentário; uma taxa de juro real igual à externa mais o risco Brasil; um sistema de crédito adequado; um sistema tarifário simples (por exemplo, uma tarifa única sobre todos os produtos de 20%, sem exceção) e liberdade cambial.
Com igualdade de condições competitivas e com um Estado forte para garanti-las, então sim o "mercado" -e não o ilustre presidente- determinaria quem "vai dançar".
Ao Estado restaria a importante tarefa de corrigir os excessos do mercado em matéria de desigualdade. O capitalismo e o "mercadismo" sobreviveram não apenas por suas virtudes, mas também porque o processo democrático produziu, nas urnas, a sua correção.

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