São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 1996
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Um sonho brasileiro

MOACYR SCLIAR

O senhor não pode imaginar, doutor, a emoção que senti quando vi o retrato dele no jornal. Até chamei a minha esposa: olha aqui, mulher, vem ver quem está no jornal, saltando garboso.
Porque era ele, doutor. Era o Mumu, o meu querido Mumu. O cavalo com que eu convivi durante quase dez anos. Durante quase dez anos ele foi meu fiel companheiro. Porque sou carroceiro, doutor. E o Mumu era o cavalo que puxava a minha carroça quando eu recolhia comida para porcos, lá na Rocinha. Era tão humilde quanto eu, o Mumu: não tinha nada de puro-sangue, não era desses cavalos metidos a sebo. Era bom marchador, isso sim. E nunca negou serviço. Chuva ou sol, lá estava ele puxando a carroça. Eu o considerava um amigo, doutor. O senhor sabe que esse trabalho de carroceiro é meio solitário, então eu conversava com ele. Contava tudo ao Mumu, as minhas alegrias e as minhas tristezas, as minhas esperanças e os meus fracassos.
O doutor há de perguntar: mas, se o senhor gostava tanto do Mumu, por que o vendeu? E eu honestamente não saberei responder. A vida tem dessas coisas, doutor. Eu poderia lhe responder com o óbvio: fiquei curto de grana, a única coisa que eu tinha para vender era o Mumu, vendi o Mumu. Mas fico me perguntando: será que não foi a mão do destino que agiu aí, doutor? Será que uma vozinha misteriosa não me assoprou no ouvido, venda o Mumu, um futuro glorioso está assegurado a ele, você não deve interferir? E assim eu vendi o Mumu e hoje ele está brilhando; já não puxa carroça, quem o monta é um garboso cavaleiro.
Devo dizer, doutor, que quando vi a foto me deu certa inveja. Porque afinal de contas o Mumu conseguiu o que eu não consegui: subiu na vida. É verdade que ele tem mais méritos do que eu. Pelo menos, sabe saltar obstáculos, e eu não sei. A única vez na vida que eu tentei saltar alguma coisa -uma cerca, eu estava fugindo de uma briga-, caí e quebrei uma perna. Isso, se Deus quiser, nunca acontecerá ao Mumu.
Inveja ou não, eu pretendo visitar o meu velho amigo. Tenho certeza de que ele me reconhecerá, doutor. Afinal, durante muitos anos quem lhe deu capim e água fui eu e essas coisas os cavalos não esquecem -são menos ingratos que os homens. Espero até que o Mumu faça alguma coisa por seu antigo dono. Ele vai olhar para mim e para o seu dono, e esse homem, que é um cavalheiro, gente fina, compreenderá que Mumu e eu somos inseparáveis. É até capaz de me contratar com um ótimo salário. E eu e o Mumu ficaremos juntos de novo. Para sempre. Comendo do bom e do melhor.
Eu sei, isso é apenas um sonho. Mas pobre tem direito a sonhar, não tem, doutor? Se o Mumu venceu -por que não posso eu vencer?

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