São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A democratização do capital

ROBERTO CAMPOS

"Nós estamos moldando o mundo mais rapidamente do que nos mudamos a nós mesmos, e aplicando ao presente hábitos do passado"(Winston Churchill)
A palavra "privatização" foi primeiro usada em 1970 pelo economista inglês David Howell, que adaptou para o setor público uma expressão que Peter Drucker usara em relação ao setor privado americano. Mal sabia ele que estava dando roupagem a uma "idéia força" que nos decênios seguintes faria recuar o Estado Leviatã, desmontaria mitos socialistas e desmantelaria o Estado populista. A privatização é uma idéia "fundamentalista", pois que objetiva o retorno do Estado às suas funções fundamentais: segurança, justiça, saúde e educação.
O movimento de privatização no Brasil assumiu modalidades cambiantes. Como nota o professor Paulo Rabello de Castro, na década dos 70, a venda das estatais não era uma reivindicação dos empresários. Estes se limitavam a pedir a limitação dos privilégios das empresas públicas e a propor incentivos e reservas de mercado para que a empresa privada pudesse ocupar "espaços vazios". Na década dos 80, a ameaça do colapso fiscal criou a preocupação de contenção de gastos das estatais, sem se contestar o mito nevrálgico: a indispensabilidade dos monopólios estatais para a segurança estratégica. Deve-se a Fernando Collor legitimar a "desestatização" como parte do vocabulário político e entronizar a eficiência produtiva como valor estratégico, independentemente do caráter público ou privado do acionista. Em retrospecto, foi trágico que Collor não transformasse seu grande erro num grande acerto. O erro foi o confisco da poupança. O acerto teria sido a liberação dos cruzados bloqueados para servirem de "moeda de privatização".
Teríamos executado a privatização mais rápida do mundo; estaria debelada a crise fiscal e teríamos entrado numa rota de desenvolvimento sustentado. De qualquer forma, quando a história meditada substituir a crônica agitada no julgamento dos fatos, duas coisas acontecerão: Collor será reabilitado como "progressista" por seu "Programa de Desestatização" de 1990, enquanto Ulysses Guimarães e Mário Covas aparecerão como "retrógrados", pelo atraso a que condenaram o país com a "Constituição dos Miseráveis" de 1988.
O surto mundial de privatização encobre dois paradoxos. O primeiro é que se trata da realização capitalista de um sonho socialista: a coletivização da propriedade. O universo restrito de funcionários e políticos manipuladores das estatais é substituído pelo universo mais amplo de acionistas na Bolsa ou beneficiários de fundos de pensão. O segundo é que alguns dos programas mais ousados de privatização foram feitos por governos trabalhistas (Nova Zelândia, Austrália) ou por países ex-comunistas. Na Rússia, graças ao sistema de distribuição gratuita de ações, há hoje 40 milhões de acionistas, e na República Tcheca, 75% da população é formada por acionistas-estatais.
Se a ênfase do "Programa de Desestatização" de Collor foi sobre a "eficiência produtiva" e o "repasse dos ganhos aos consumidores", o programa de privatização de FHC se incorpora numa estratégia mais ampla de "retomada do crescimento" e de "recuperação do investimento". A alavancagem proviria de investimentos privados na infra-estrutura de energia, transporte e telecomunicações. (Neste último setor, nosso atraso é lancinante, como o sabem todos que atravessam a experiência neurotizante de acessar a Internet. Em quase dois anos de governo, nem sequer um edital de licitação foi lançado. Nenhuma privatização ocorrerá antes do segundo trimestre de 1997, com duas desvantagens: a abertura será inicialmente modesta, apenas para a telefonia celular móvel, e coincidirá com a aceleração das privatizações européias, mais atraentes para os investidores. O ministro Sérgio Motta, nunca caluniado por excesso de competência, é um dínamo verbal e uma lesma operacional...)
A privatização é uma dessas idéias cujo tempo chegou. Na Inglaterra, a privatização se transformou numa teoria sociológica -a "Micropolítica". Em sua ideologia privatista mrs. Thatcher tinha três objetivos: fazer recuar as fronteiras do Estado, substituir a "cultura da dependência" pela "cultura empresarial" e reduzir o poder dos sindicatos encastelados nas estatais.
No impulso mais recente de privatização no continente europeu, os motivos dominantes foram a crise fiscal dos Estados e o desafio da globalização. A crise fiscal resultado do choque entre as demandas crescentes do "Welfare State" e a decrescente tolerância do contribuinte. A globalização, por sua vez, exige flexibilidade competitiva para fusões e incorporações, lentas e difíceis nos complexos estatais.
Nos países ex-comunistas, a privatização é parte da "Grande Transição" da economia centralmente planejada para a economia de mercado. É uma reação contra o Estado despótico, ineficiente e corrupto, que no conflito de classes destruiu a classe mais fundamental para o desenvolvimento: a classe empresarial.
Na América Latina, a privatização surgiu no bojo de programas de estabilização monetária e modernização, ao fim da década perdida dos 80. Alívio fiscal, busca de eficiência, restauração da infra-estrutura, atração de investimentos estrangeiros -eis os determinantes do movimento.
No caso brasileiro, além desses saudáveis subprodutos da privatização, existem duas vantagens específicas -a redução da taxa de corrupção e democratização de capital.
A destacada classificação do Brasil na liga dos países mais corruptos do mundo resulta de três fatores: a) pistolão político e propinas financeiras nos contratos e empreitadas governamentais; b) excesso de regulamentação, estimulando a compra e venda de licenças; c) superposição de cinco níveis fiscais, com complexos regulamentos e batalhões de agentes à busca de remuneração sub-reptícia.
As potencialidades da privatização como eficaz instrumento de democratização de capital não têm sido minimamente exploradas. Até agora, somente dois setores privilegiados -os funcionários das estatais e os participantes dos seus fundos de pensão- se têm tornado acionistas. No conjunto das receitas de privatização, os fundos de pensão representam 12%, e apenas 5,1% das ações estão em mãos de pessoas físicas identificáveis. O método de venda subsidiada de ações aos funcionários não funcionou como instrumento de pulverização de capital, exceto no caso da Usiminas e da CSN, pois os funcionários se apressaram em vendê-las, monetizando a margem de subsídio.
O grande apóstolo do sócio-capitalismo, visando à efetiva democratização de capital, tem sido o Instituto Atlântico por meio da proposta do professor Rabello de Castro, para a criação das "moedas sociais". Não há razão lógica porque somente algumas dívidas do governo -como debêntures Siderbrás, obrigações do FNDE ou títulos da dívida agrária- sejam admitidas como moedas de privatização. Procedimento igual deveria ser usado para as dívidas sociais do governo. Estas, constituídas por poupanças forçadas (FGTS, PIS/Pasep), assim como pelas contribuições previdenciárias pagas ao INSS, abrangem praticamente todo o universo dos cidadãos. Nada mais justo que seus titulares possam optar por sua transformação em títulos patrimoniais, pela compra de ações das estatais. Essa forma de democratização do capital teria ainda duas outras vantagens: uma delas seria converter as contribuições previdenciárias em fonte de capitalização para o desenvolvimento do setor produtivo; e outra, o aumento da oferta de pequenos empresários, pois que funcionários e contribuintes se tornariam proprietários e passariam a entender as oportunidades do mercado.

Texto Anterior: Língua Santa
Próximo Texto: Dívida opõe Estados ao governo federal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.