São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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As armadilhas da globalização

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

O Fórum sobre "globalização" do investimento direto, patrocinado pela Unctad, realizado recentemente em Genebra, deixou claras as divergências entre os países em desenvolvimento e as nações mais industrializadas agrupadas na OCDE, a respeito de um possível tratado multilateral que liberalize a entrada de investimentos estrangeiros em qualquer espaço nacional.
O encontro que serviu como uma prévia da reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ser realizada em dezembro, mostrou que o desequilíbrio na distribuição do investimento estrangeiro direto é brutal, favorecendo os países mais desenvolvidos e mais protecionistas em matéria de comércio e investimento estrangeiro.
Os países africanos e em particular alguns asiáticos que mais têm atraído investimento direto estrangeiro nos últimos anos não querem discutir o tema na OMC e acham essencial terem o direito de estabelecer em suas legislações nacionais o tratamento a ser dado ao capital estrangeiro. No bloco dos "multilateralistas", que querem a discussão na OMC, estão os Estados Unidos e o Japão.
Os EUA, naturalmente, consideram a "globalização" do capital um modelo insuperável, apoiando a penetração das suas empresas em todos os países do mundo, sem qualquer restrição dos demais Estados nacionais. Mas as políticas de globalização têm seus aspectos perversos mesmo para o país que "inventou" as empresas "transnacionais" e impôs ao mundo a sua hegemonia, por meio de regras multilaterais que ele mesmo não cumpre quando se trata de seu território.
Os efeitos mais daninhos para a "Nação Americana" acabam de ser analisados, em número especial do Foreign Affairs (ver "Gazeta Mercantil" de 11/10/96), num artigo de Ethan Kapstein, diretor de estudos do Council on Foreign Relations, de Washington.
Kapstein assinala que as políticas macroeconômicas restritivas, generalizadas com a "globalização", além de provocar uma expressiva redução do crescimento depois de 1989, "favoreceram interesses financeiros à custa dos trabalhadores, criando uma classe internacional de rentiers".
Com efeito, o crescimento dos juros da dívida pública e privada americana foi astronômico. Desde a política Volker-Reagan, os EUA passaram rapidamente de maiores credores a maiores devedores mundiais. Em contrapartida, reduziu-se o salário real do trabalhador americano sem curso secundário, de US$ 11,85 por hora em 1973 a apenas US$ 8,64 em 1993; aumentaram a dispersão e a concentração da renda e diminuiu a proporção de sindicalizados de 25% para 16%. A consequente perda de influência política dos sindicatos se expressa em menores salários e benefícios para os trabalhadores não-especializados, maior insegurança de emprego e menos interesse dos políticos pelos "perdedores da economia".
Não por acaso, conclui Kapstein que, "...na ausência de políticas e programas de base ampla, planejados para ajudar os trabalhadores, o debate político nos Estados Unidos e em muitos outros países logo azedará. Populistas e demagogos de várias nuances encontrarão no protecionismo e na xenofobia suas 'soluções' para os problemas econômicos contemporâneos".
Clinton, por sinal, acaba de demonstrá-lo com sua recente declaração sobre o "tratamento" que pretende dar aos imigrantes, com o que obteve expressivo avanço nas prévias sobre o seu adversário republicano.
O Japão não ficou imune a esse jogo global. Além de ser o maior credor dos EUA, foi obrigado a desregular as operações financeiras na praça de Tóquio. As bolhas especulativas que se seguiram jogaram a economia japonesa numa profunda crise nos anos 90. Um dos sinais mais evidentes é uma enorme crise bancária, com créditos sujeitos à reestruturação da ordem de US$ 400 bilhões em março de 1995, de acordo com o Ministério das Finanças japonês. Fontes não oficiais admitem que a massa de inadimplência alcança o dobro, ou seja, perto de US$ 800 bilhões.
A crise japonesa não tem, porém, apenas uma face financeira. Sua face real é igualmente importante. Para consolidar a conquista dos mercados externos e aplicar seus excedentes de caixa, as empresas japonesas passaram a se internacionalizar a partir dos anos 80. Bancos, tradings companies e empresas industriais foram deslocadas para várias partes do mundo, começando pela Ásia. Isso acabou levando a uma deterioração dos laços de solidariedade que caracterizavam a sociedade japonesa, tornando mais difícil a coordenação de decisões empresariais e estratégicas e a distribuição equilibrada dos frutos do progresso técnico. Todo o esquema de subcontratação e de cooperação técnica que ligavam grandes e pequenas empresas ficou em xeque.
Essa situação explica a adesão entusiástica do Japão, pela primeira vez na sua história, aos princípios do "multilateralismo" por meio justamente de um acordo global de investimento direto que elimine as restrições à entrada, sobretudo nos EUA e na Europa, das suas pequenas e médias empresas que estão perdendo terreno internamente e do ponto de vista internacional.
A nova ofensiva dos países desenvolvidos para alcançar um maior patamar de internacionalização do capital produtivo tem motivações de distinta natureza. Já os resultados potenciais para os países de menor desenvolvimento relativo são, no entanto, claramente os mesmos; além das implicações sobre sua autonomia econômica e soberania política, a adoção de um regime de desregulação global do investimento direto externo, como o proposto, abriria o caminho para que a maior parte das indústrias chaves, meios e serviços de comunicação, infra-estrutura, serviços estratégicos e recursos naturais passem à propriedade e controle de investidores estrangeiros, sem garantir, como eles "postulam", investimento novo sustentado, nem, muito menos, melhoria das condições sociais.
O Brasil, que preside atualmente a Unctad, está numa posição difícil para buscar um "consenso", já que, em seu afã de atrair investimento direto estrangeiro a qualquer custo, fez no ano passado uma reforma constitucional igualando as empresas estrangeiras às nacionais. Este acordo "avant la lettre" ultrapassa de muito o "multilateralismo" dos EUA e dos principais países da Europa Continental.

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