São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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O pior já passou

JACOB GORENDER

Esquerda decadente, apagada, finita. Assertiva fiel aos fatos ou tão somente expressão dissimulada de um desejo?
O desmoronamento dos regimes comunistas do Leste Europeu e o esfacelamento da União Soviética acentuaram dramaticamente os estragos que vinham sofrendo as diversas correntes de esquerda desde os anos 70. Os partidões adeptos do regime soviético sofreram fortes reduções, se tornaram residuais ou desapareceram. Mas também as correntes críticas desse regime nada ganharam. Num extremo, os trotskistas continuam seitas utópicas, como sempre foram. No outro, os partidos social-democratas capitularam diante da ofensiva liberal-conservadora. Na França de Mitterrand e na Espanha de González, engavetaram seus próprios programas e aplicaram a política de teor neoliberal, acabando pela perda do governo para expoentes da direita.
Na Itália, os sucessores do PCI -o outrora maior partido comunista do Ocidente- finalmente chegaram ao poder, em aliança com uma facção da democracia cristã. Desta vez, livraram-se do veto do Vaticano e de Washington. Mas ao preço da renúncia à identidade comunista.
Nesse quadro sombrio de fim de linha se insere a esquerda brasileira, cujo bloco minoritário no Congresso aparentemente não pode fazer mais do que espernear diante do sítio da aliança governista PFL-PSDB-PMDB. Em entrevista recente ("O Estado de S.Paulo", 22/9/96), o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que falta ao Brasil uma esquerda mais atual, capaz de se desprender de velharias e, supostamente, apoiar as propostas inovadoras do seu governo.
Decerto, há velharias das quais conviria desfazer-se. Com critério seletivo, todavia. A reforma agrária é uma proposta velhinha, no entanto hoje demonstrando atualidade tão vigorosa que quase ninguém se manifesta contra ela. Só que permanece como sempre a intenção de impedi-la por parte dos grandes proprietários de terra, apoiados nos três poderes e em todo o "establishment" dominante. FHC pensa escamotear e sufocar a reivindicação de reforma agrária nos corredores burocráticos de um ministério.
No Brasil como em outros países, a revitalização da esquerda procede de movimentos de massas com repercussões políticas e não de congressos de intelectuais. Quem colocou a proposta de reforma agrária no ponto alto em que se encontra foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), responsável pela notabilíssima proeza de descobrir a forma de luta viável e eficaz para todas as regiões tão diferenciadas de um país continental. A exigência social de reforma agrária atingiu, precisamente agora, o nível mais elevado em toda a história brasileira, superior ao das ligas camponesas, que precederam o golpe de 1964. Ainda falta a contrapartida urbana para o MST. Porém, se continua válido o "efeito Orloff", teremos no Brasil algo de proporções semelhantes às duas greves gerais que paralisaram a Argentina.
Quando veio a público o livro de Castañeda sobre a utopia desarmada, declarando encerrado o ciclo guerrilheiro na América Latina, iniciou-se, no próprio país do autor, a guerrilha dos zapatistas, até hoje incólume. Como se não bastasse desmentido tão contundente, o governo mexicano, desde há poucas semanas, precisa enfrentar não uma, porém duas guerrilhas.
A combatividade diante da ofensiva capitalista mundial não se restringe ao Terceiro Mundo. Aos protestos de milhões de franceses, se acrescentam as greves e outras manifestações na Alemanha, na Itália e nos EUA, contra os projetos que ampliam o desemprego e reduzem benefícios sociais. Evidencia-se que os trabalhadores se recusam a pagar com o seu sacrifício pela introdução de novas tecnologias, pelas práticas empresariais de reengenharia e enxugamento e pelas políticas de arrocho deflacionário.
Nem fim da história nem fim da esquerda. O pior já passou para ambas ou, se quiserem, para a história da esquerda.

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