São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 1996
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Stelling e Reggio debatem Deus

EDUARDO SIMANTOB
DA PUBLIFOLHA

Para quem acompanha a Mostra há pelo menos 10 anos, os nomes Godfrey Reggio e Jos Stelling não são novidade. Diretores de "Koyaanisqatsi" e de "O Ilusionista", respectivamente, os dois estão de volta ao Brasil, desta vez integrando o júri do festival.
Em comum o americano Reggio, 56, e o holandês Stelling, 51, têm só a formação católica em ambiente protestante. Reggio não vai ao cinema pois, diz, não tem o costume e sua mulher também não gosta.
Desnecessário dizer que não conhece os filmes do colega. Além disso, cinema para ele é só um veículo para amenizar o "genocídio de línguas" da modernidade.
Stelling é, ao contrário, um cinéfilo e contador de histórias, e gosta de criar cenários com base nas diversas tradições e mitos europeus.
Por sugestão da Folha, os dois diretores sentaram-se para um bate-papo no último sábado, em meio à maratona de assistir os filmes concorrentes ao prêmio do júri. A seguir, trechos da conversa.
*
Folha - Os srs. continuam católicos?
Godfrey Reggio - Eu lhe diria que não sou membro da Igreja, aliás acho até que a Igreja é um contra-senso às palavras de Jesus.
Jos Stelling - O cinema tem um componente católico muito forte: pensa-se em metáforas, em arquétipos, imagens, interpretações. Mas é só uma teoria particular. Quando vemos o cinema francês e italiano, mais o americano de Scorsese, De Palma ou Coppola -que são italianos-, temos ali essa fixação nas imagens, uma atitude quase religiosa.
Já Ingmar Bergman, por exemplo, trabalha a palavra, o gesto. Mas ele é luterano, além de ser um dramaturgo por excelência. E nesses países luteranos as imagens foram destruídas com a Reforma, valorizando-se os atributos que os filmes de Bergman celebram.
Folha - Em "Koyaanisqatsi" e "Powaaqatsi" o sr. parte de uma concepção religiosa da natureza extraída dos índios, diferente da visão católica.
Reggio - Sim, mas evitei qualquer abordagem antropológica ou teológica e tentei trabalhar a partir de uma palavra fora de contexto literário, que vem da tradição oral, apresentando um mundo sem bagagem cultural "a priori".
Não são filmes que tratam da vida ou cultura indígenas, mas que se apropriam de uma visão crítica do mundo que faz parte das tradições dos Hopi (comunidade indígena do sudoeste dos EUA).
Folha - Essas palavras reproduzem um modo de vida particular.
Reggio - Sim. Observe que, no início do século, existiam cerca de 25 mil línguas e dialetos principais. Hoje há 5 mil. Para cada língua extinta há um modo de vida perdido.
Folha - E voltando às imagens, temos nessa Mostra "O Holandês Voador". Esse filme não conta o mito, mas parte dele para recontar uma outra história.
Stelling - Tenho que explicar isso em todo lugar. Só a imagem do "Holandês Voador" é suficiente para que se crie todo tipo de histórias, e meu filme teve uma gama bem variada de interpretações.
Para os holandeses, trata-se da luta de um homem só contra Deus, a morte, o destino qualquer que seja. Para os alemães é uma história de amor muito estranha.
Reggio - E nos EUA remete à corrida do ouro na Califórnia, pois "Holandês Voador" era o nome de uma famosa mina de ouro.
Stelling - Mas o que me fascina no mito, que data do século 14, é a fantasia da fuga.
Folha - E por que localizar a história no século 16?
Stelling - Na Idade Média tudo era muito fácil: um só Deus, um só modo de vida etc. Depois da Reforma todos começaram a ter suas próprias crenças e modos diferentes de entender o mundo. E meu filme se passa no início desse processo, que vem até hoje.
Meu modo de abordar isso foi recriar o mito, fazendo com que meus personagens reimaginassem os próprios mitos que justificavam sua existência. Esse movimento circular, a meu ver, tem muito a ver com a composição musical.
Reggio - Eu não penso na trilha enquanto imagino o filme. Na verdade eu dou as indicações do que quero ao compositor, no caso o Phillip Glass, por meio de poemas. É a única maneira pela qual consigo, com palavras, passar a sensação que deve alimentar uma sequência de imagens.
Folha - E do Brasil, que imagens lhes chamam mais a atenção?
Reggio - Já estive aqui outras vezes, inclusive filmei Cubatão. Mas o que realmente me tocou, assim como quando vi "Os Esquecidos" (de Luis Buñuel), foi o educador Paulo Freire.
Ele não só busca alfabetizar, mas também fazer com que o alfabetizado reivindique o direito de portar sua língua.

Filme: O Hoandês Voador
Onde: hoje, às 23h, no Maksoud Plaza

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