São Paulo, sexta-feira, 1 de novembro de 1996
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Desventuras de uma histórica casa-grande

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Nunca dera duro na vida, esperando que o avô morresse. Herdeiro único, ele receberia a fazenda Santa Mônica, a mais famosa daquela zona do Estado do Rio -com sua bela casa-grande, tombada pelo patrimônio, velha construção colonial, citada em livros de arte e de história.
Ali o duque de Caxias dormira em uma de suas campanhas, numa das salas funcionara a capela em que bispos e até um núncio apostólico rezara missas para a devoção do consolidador do Império.
Pois o avô batera as botas depois de duas extravagâncias: comera metade de um leitão-de-leite e, revigorado pelas proteínas daquela carne macia e perfumada, tentara comer as carnes macias e perfumadas da filha de sua empregada, Olguinha, com seus 13 anos em flor.
Foi dose para os seus 80 anos rijos -botou a mão no peito, fez cara espantada e morreu.
Nove meses depois, já entrado nos 40 anos, o neto tomou posse da herança, mandou todos os empregados embora e ficou sozinho, deitado em sua rede cearense armada na varanda senhorial, disposto a não mais fazer nada além de gozar de sua paz, da aura histórica de sua bela casa-grande.
E assim viveria até os 70 anos, quando, uma tarde, deitado em sua rede cearense, contemplando a paz de suas terras, ele viu a nuvem de poeira se erguer no horizonte. Que seria aquilo? Ninguém o visitava, ninguém o perturbava, quem seria o intruso cujo carro levantava poeira lá longe, onde ficava a porteira que assinalava o ponto mais distante de seus domínios?
Cinco minutos depois ele ficou sabendo. Era uma equipe pioneira de TV que vinha procurar locação para uma telenovela, assunto histórico, do tempo dos vice-reis, envolvendo portugueses devassos, escravas apetitosas, um cônego concupiscente e um jovem idealista que estudara em Coimbra.
Precisavam de uma casa como aquela, peça autêntica da era colonial, não podiam pagar muito, mas se responsabilizariam por uma reforma no telhado e dariam crédito no final de cada capítulo.
Ele argumentou que o telhado estava bem como estava, algumas salas tinham decoração feita por um discípulo de mestre Athayde, podiam usar a casa, mas a deixassem como estava.
Prometeram-lhe mundos e fundos, mais fundos do que mundos e ele aceitou, desconfiando vagamente que estava fazendo besteira.
Uma semana depois veio a equipe preliminar que furou paredes, cismou com as portas e as janelas verdes, onde já se viu isso? e pintaram paredes de ocre e janelas de azul.
Mais uma semana e veio outra equipe, com o diretor de arte que achou tudo uma droga e mandou pintar as paredes de amarelo, portas e janelas de marrom, furou uma clarabóia na sala de jantar e transformou a encantadora capela barroca numa tenda estranhíssima, cheia de tridentes e deuses africanos.
Bem, as gravações iam começar, chegaram os artistas principais, os técnicos de iluminação -que quase incendiaram a casa inteira com os curtos-circuitos que provocavam de meia em meia hora, até que chegou o diretor de produção, que produziu logo de início um escândalo: mandou pintar tudo de cor-de-rosa, furou todos os tetos, mudou todos os assoalhos e arrebentou a bela fonte de pedra-sabão que havia sido o orgulho de seu avô e de cuja água bebera o duque de Caxias.
A desgraça chegava ao fim. No dia seguinte teriam início as gravações. E no dia seguinte chegou afinal o diretor da novela, que teve um ataque de cólera quando viu o que haviam feito de seu cenário.
Mandou pintar as paredes de roxo, as janelas de verde-garrafa, a novela era meio gótica, colonial e gótica, por isso mudou novamente o assoalho e derrubou metade das mangueiras que davam sombra à acolhedora varanda onde ele gostava de passar o tempo meditando na paz que já havia sido.
Não teve alternativa: pegou sua rede cearense e foi morar num antigo celeiro de café, nos fundos da casa.
Desgraças duram o mesmo que as graças, geralmente mais. E um dia foi todo mundo embora, ele recuperou o poder e a glória sobre seus domínios, mandou restaurar tudo, a capela barroca onde rezaram o duque e o núncio apostólico, a fonte de pedra-sabão, pintou janelas e portas com o honesto e tradicional verde colonial.
Estendeu sua nobre rede cearense e decidiu que, houvesse o que houvesse, ninguém profanaria sua paz.
A novela foi ao ar, deu 45 pontos de ibope, ele nem se deu ao respeito de ver um capítulo, num momento de ira quebrara a velha televisão em preto-e-branco que também havia herdado de nem sabia mais quem.
Uma tarde, ao sol poente, ele cochilava na rede cearense, boiando em sua felicidade feita de calma e silêncio quando, de repente, lá para a direção de sua porteira, viu levantar-se uma nuvem de poeira.
Foi a seus guardados, apanhou um velho mosquetão dos tempos da Guerra do Paraguai, lembrança que o duque de Caxias dera a seu avô.
Ele também herdara o mosquetão e com ele, esperou pela equipe preliminar de uma concorrente da TV anterior. Disposto a resistir até o último tiro, consta que murmurou entre-dentes: "Não passarão!".

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