São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Defesa da revolução

MODESTO FLORENZANO

com mais de cinco anos de atraso (a primeira edição inglesa é de 1990), acaba de sair em português o único livro que, salvo engano, ainda faltava da densa e extensa obra do historiador Hobsbawm.
O autor retoma e desenvolve aqui temas presentes na quadrilogia inaugurada, em 1962, com "A Era das Revoluções (1789-1848)", continuada com "A Era do Capital (1848-1875)" e "A Era dos Impérios (1875-1914)" e encerrada, em 1994, com "A Era dos Extremos (1914-1991)". Ao reafirmar, contra os revisionistas, a importância e a permanência da Revolução Francesa, Hobsbawm reatualiza considerações que já havia apresentado antes, sobretudo em "A Era das Revoluções", e, ao explicar o desenvolvimento e a crise da historiografia revolucionária francesa do século 20 e o porquê do revisionismo, descreve mudanças históricas ocorridas na França a partir da década de 1950, que não figurarão depois em "A Era dos Extremos".
No primeiro capítulo, "Uma Revolução de Classe Média", demonstra que o modelo ou paradigma atribuído ao marxismo que explica a Revolução Francesa como uma revolução burguesa e que tem sido o alvo dos historiadores revisionistas não foi elaborado por Marx nem pelos historiadores marxistas ou inspirados no marxismo. Foram, como o próprio Marx reconhecera, os historiadores franceses liberais do período da Restauração (1815-1830), Guizot e Thierry, Thiers e Mignet, que interpretaram a Revolução Francesa com base na luta de classes (burguesia contra a nobreza e, a seguir, "sans-culottes" contra a burguesia) e desenvolveram o modelo da revolução burguesa ou de classe média. Ao recuperar a interpretação desses autores, com uma notável seleção de citações de suas obras, Hobsbawm pretendeu tanto defender quanto explicar essa "velha tradição".
Tradição que, a seguir, os movimentos sociais democráticos e socialistas incorporaram e desenvolveram, como mostra no capítulo seguinte, "Além da Burguesia". Ao contrário dos revisionistas, Hobsbawm está convencido e não abre mão do que "ainda é óbvio: a centralidade e a relevância da Revolução Francesa". Seu objetivo, sobretudo neste segundo capítulo, é trabalhar "com a história de sua recepção e interpretação, da herança que recebeu dos séculos 19 e 20". Detendo-se particularmente na Rússia e nos intelectuais revolucionários russos, mostra como estes "estavam mergulhados na história da Revolução Francesa", a ponto de o comunista francês Marcel Cachin declarar, em 1920, que "eles conhecem a Revolução Francesa melhor do que nós".
Os dois últimos capítulos ("De um Centenário a Outro" e "A Revisão que Subsiste"), sem dúvida os melhores do livro, combinam pesquisa de fontes (jornais e revistas do centenário da Revolução Francesa) com memórias do autor (sobre a França e os historiadores franceses, antes e depois da Segunda Guerra). Segundo Hobsbawm, por ocasião do centenário, os liberais, mesmo sendo adversários da revolução e da democracia (então estreitamente identificadas, ao contrário do que ocorre hoje), reconheceram, diferentemente do que ocorrerá no bicentenário, que a Revolução Francesa, nas palavras do historiador liberal católico lord Acton, tinha dado "um imenso passo adiante na marcha da humanidade, algo que lhe devemos até hoje por alguns dos benefícios políticos que gozamos". Acrescentemos que Acton é o famoso autor da frase: "Todo poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente".
Mas Hobsbawm não se limita a mostrar, e ironizar, que os historiadores atuais, liberais e revisionistas, estão aquém dos seus antepassados do século 19, na compreensão da importância e significado da Revolução Francesa. Apresenta as razões ideológicas e materiais que explicam "por que, desde a década de 1970, esse rebaixamento da Revolução Francesa se tornou menos inconcebível do que teria sido antes". Não se pense que o marxista Hobsbawm não enfrente e, aqui também, não explique, com espírito crítico e franco, o problema da crise do socialismo e do marxismo e, consequentemente, da crise da historiografia jacobino-marxista da Revolução Francesa. Aliás, ele tem o mérito de reconhecer, e de demonstrar, que, "os marxistas tiraram bem mais da historiografia republicana da Revolução Francesa, tal como ela se desenvolveu no século 20, do que contribuíram para ela. No entanto, não há dúvidas de que fizeram dessa historiografia a sua própria e, portanto, asseguraram que um ataque ao marxismo deveria ser também um ataque àquela historiografia".
Para Hobsbawm, o republicano e socialista, mas não marxista, Georges Lefebvre (1874-1959) -considerado o maior historiador da Revolução Francesa deste século, e o único que recebe no livro (capítulo 3) um tratamento privilegiado- foi alvo dos ataques revisionistas, não pelos seus trabalhos seminais da década de 1930, mas pelo fato de ter se aproximado do Partido Comunista Francês, depois da Segunda Guerra Mundial, e de ter sido anexado pela historiografia marxista. É certamente por modéstia que Hobsbawm não nos conta que, na década de 1950, ele fazia parte -com o francês Albert Soboul, os ingleses Richard Cobb e George Rudé, o norte-americano Robert Palmer, os italianos Armando Saitta e Alessando Galante Garrone, o escandinavo Tonneson e o japonês Takahashi- da "internacional" de historiadores que frequentavam a casa de Lefebvre.
Este livro é, de longe, e a um só tempo, a defesa da Revolução Francesa e a crítica ao revisionismo, a mais inteligente e abrangente de quantas já foram escritas desde o aparecimento do livro de F. Furet, "Pensando a Revolução Francesa", em 1978. E isto apesar de Hobsbawm não criticar nunca diretamente, mas sempre pelas bordas, a interpretação furetiana. A bem da verdade, Hobsbawm comete uma injustiça quando afirma que Furet nega a importância da Revolução Francesa. O fato de Furet criticar a historiografia jacobino-lenino-marxista e o seu modelo de revolução burguesa não significa que não reconheça que foi a Revolução Francesa quem inventou a democracia moderna. O que não é pouca coisa.
A tradução está bem-feita, mas faltou uma revisão mais cuidadosa, que teria evitado pequenos senões como "twelve years" traduzido por "doze meses" (pág. 19); "has been a candidate for reabilitation, namely Auguste Cochin", por "tem possibilidade de ser candidato à reabilitação, Auguste Cochin" (págs. 93-4) -o nome de Cochin está errado nas duas edições, pois o correto é Augustin-; "the backing of an elite institution", por "suporte de uma instituição de origem"; "translate a then standard work", por "traduzir um trabalho padrão"(pág. 95), e "biographically", por "bibliograficamente" (pág. 117).

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