São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Vacinophobia

MAGALI ENGELS

seguir pistas, recolher vestígios e indícios, realizar um meticuloso trabalho de investigação, aliando métodos e técnicas consistentes a uma boa dose de intuição. Juntar fragmentos, conferindo-lhes sentido, com referenciais teóricos sólidos, criativos e, sobretudo, flexíveis, apesar das incertezas e lacunas. Tecer intrincadas teias, nas quais se entrecruzam "realidades" e "possibilidades", como diria Carlo Ginzburg. Construir versões de histórias mescladas de "verdades" e "probabilidades", e sempre situadas na encruzilhada de muitas outras histórias. Estes são alguns dos mais difíceis e instigantes desafios diante dos quais os historiadores se vêem colocando e recolocando ao longo do tempo. O enfrentamento desses desafios -e de muitos outros- marca profundamente a trajetória de Sidney Challoub -professor do departamento de história da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)-, um dos mais brilhantes historiadores de sua geração.
"Cidade Febril" representa uma contribuição original e indispensável aos estudos sobre a sociedade brasileira do século 19, nos mais diversos campos do conhecimento: história, antropologia, medicina social, ciência, política etc. Pela abordagem de temas relevantes -como os cortiços, as epidemias de febre amarela e a ideologia da higiene; as práticas de vacinação e a cultura "vacinophobica"-, o autor descortina o Rio oitocentista como um cenário em movimento consonante com os ritmos irregulares do processo de transformações que marcaram a sociedade da época.
O texto é construído a partir dos caminhos e descaminhos da investigação empírica, estratégia que, aliada à competência do autor, acaba por produzir uma síntese bem-sucedida entre a análise das fontes e as formulações teórico-metodológicas, cujo referencial básico é, "por formação, teimosia e opção política" (pág. 9), a história social. Além disso, a análise é profundamente marcada pelo constante e frutífero diálogo com a produção historiográfica especializada, sobretudo a norte-americana. Quanto à narrativa das histórias que compõem o livro, deve-se registrar ainda que, sem comprometer a especificidade da linguagem do historiador, esta se desenrola inspirada no tom irônico e delicioso do mais autêntico e refinado estilo machadiano, garantindo-se, assim, uma leitura extremamente prazerosa.
O eixo fundamental da análise de Challoub, nos dois primeiros capítulos, situa-se em torno de duas questões básicas. De um lado, as estratégias de intervenção sobre os cortiços -cujas definições extremamente abrangentes e difusas acabam por identificá-los aos variados tipos de habitações populares-, fundamentadas na ideologia da higiene e "legitimadas" pela associação classes pobres/classes perigosas. Consenso e divergência, alianças e confrontos são os referenciais-chave para análise das formulações teóricas e das tentativas de implementação de tais estratégias. De outro, as diferenças entre os significados sociais da febre amarela, construídos e difundidos nos anos 1850, e as percepções sociais da mesma doença, reconstruídas nos anos 1870, cuja compreensão remete necessariamente "para a história das transformações nas políticas de dominação e nas ideologias raciais do Brasil do século 19" (pág. 8).
No último capítulo, o autor tece uma história do serviço de vacinação -criado na cidade do Rio em 1804- no entrelaçamento de outras histórias, que falam das vivências dos habitantes da cidade em relação às práticas de vacinação, de "aspectos das concepções populares sobre doença e cura" (pág. 10), enfim, de uma cultura "vacinophobica" que se constitui e se consolida durante todo o 19, entre vastos segmentos da população urbana.
Os caminhos escolhidos por Sidney Challoub para abordar a história da varíola e da vacina antivariólica representam uma contribuição decisiva para a compreensão da Revolta da Vacina ocorrida na cidade do Rio em 1904. Trata-se de um redimensionamento radical dos enfoques das lutas populares, que nelas identificam apenas os aspectos que traduzem a "reação/resistência/negação", desprezando os indícios reveladores da "ação/afirmação". Trata-se, ainda, de um profundo questionamento das análises que, adotando a perspectiva de hierarquização dos saberes, desqualificam completamente os saberes e práticas populares -associados à ignorância, recusando às práticas culturais e políticas autônomas construídas e reproduzidas pelas classes trabalhadoras um lugar na história. Acompanhar os passos de Sidney Challoub no desvendamento da "Cidade Febril" nos conduz a reflexões fundamentais que traduzem de forma necessariamente indissociável as amarguras do ofício e as angústias do tempo presente.

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