São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Ministério desafinado

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Quando a burocracia mete sua colher na cultura, a receita costuma desandar e o resultado é quase sempre indigesto. O caso repete-se, agora, na área musical.
Uma comissão do Ministério da Cultura está interessada em criar mecanismos para "proteger" a música brasileira.
Se há um produto cultural no Brasil capaz de competir internacionalmente, sem precisar de "proteção" do Estado, é a música. E se há a um produto cultural de largo consumo que compreendeu a moderna internacionalização da cultura e soube submetê-la à lição modernista da antropofagia foi a música.
Se os diversos setores do país fossem capazes de repetir em suas áreas de atuação a equação da bossa nova, essa original e sofisticada síntese de elementos nacionais e internacionais, para a criação de um produto brasileiro e universal, viveríamos num lugar mais inteligente e moderno.
Mas o ministro da Cultura, respeitável e vivo sociólogo que parece ter embolorado nos escaninhos da cultura pública, está incomodado porque quando morou nos EUA ouvia mais música americana no seu automóvel do que ouve brasileira por aqui.
Ora bolas, também via mais filmes americanos nos cinemas e mais autores americanos nas livrarias. E mais marcas americanas de automóveis e eletrodomésticos. E mais hot dog nas carrocinhas do que cuscuz por aqui.
Os EUA são o país mais rico do mundo, com uma cultura nacional mundialmente forte -e bastante refratária a estrangeirismos.
Será que conseguiram isso com leis limitando a quantidade de salsa e bolero em suas rádios?
É um primor, aliás, a tentativa da tal comissão definir, nesses tempos de mundialização, Internet e TV a cabo, o que é música brasileira: aquela "composta por brasileiro nato, estrangeiro naturalizado ou domiciliado no país há pelo menos dois anos".
Só rindo!
Quando o norte-americano David Byrne compõe um samba, ele está fazendo o quê? E quando um garoto brasileiro compõe um blues em inglês, está fazendo o quê? Quando o grupo mineiro Sepultura, residente nos EUA, é considerado a melhor banda de rock pesado do mundo, faz o quê?
E quando um japonês, como Seigen Ono, escreve bossa nova, misturando português, inglês e francês?
E se o tal estrangeiro naturalizado, previsto pela douta comissão, escrever um jazz tradicional de New Orleans?
Ou se fizer um maxixe carioca e for "domiciliado" só há um ano e meio no país?
A definição da comissão é uma sonora bobagem.
Outra: reservar espaço para a música instrumental.
Para quê? Por que não reservar, então, espaço para o canto coral? Para a ciranda? Para a seresta? Para o Quarteto em Cy?
O que adianta criar um lugar cativo para a música brasileira nas programações das rádios se ele for ocupado por Tiririca?
Mil vezes obrigar as rádios a tocarem só Cole Porter. Ou Gardel. Seria, ao menos, um intervencionismo mais elegante.
Essa mania regulamentadora nacionalista na cultura não serve para nada.
Ou melhor, serve para incentivar o provincianismo.
A própria música brasileira moderna, no tropicalismo, lutou a favor da abertura internacional e contra a folclorização do subdesenvolvimento.
Se o governo quer fazer alguma coisa nessa área deveria, sim, investigar uma prática de abuso econômico muito comum nas nossas rádios e TVs -aquela que atende pelo nome de "jabá" e impõe o poder do dinheiro na veiculação. Todos conhecem.

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