São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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A vida de um passageiro vale 1.250 quilos de carga aérea

ELIO GASPARI

O vôo 402 da TAM pode mudar a história da aeronáutica brasileira e do seu precário sistema de prevenção de acidentes. Isso acontecerá se as famílias das 96 vítimas forem atrás dos responsáveis. Não se trata de fulanizar as culpas, mas da monetarizar as responsabilidades. Em bom português: o melhor desestímulo para a impunidade é a ruína.
Nos acidentes aéreos brasileiros há uma discrepância entre o peso da carga que cai nos ombros das famílias das vítimas e o volume do desconforto que sobra para os seus responsáveis.
Talvez o Brasil seja único país com dois ex-presidentes (Castello Branco e Nereu Ramos) nas listas de passageiros de aviões caídos. É provável que também seja o único a ter gasto em 1996 apenas metade do dinheiro de que dispunha para a manutenção de serviços de prevenção de desastres. (Tinha R$ 16 milhões, gastou R$ 8 milhões.)
Exemplo inglês
Nos próximos dias será anunciado em Londres um acordo entre os familiares das vítimas do vôo 103 da Pan Am, explodido em 1989 por uma bomba enquanto sobrevoava Lockerbie, na Escócia. Nele morreram 259 pessoas a bordo e 11 em terra.
A companhia ofereceu 80 mil dólares a cada família e de acordo com a legislação internacional, era isso que a Panam devia. As famílias foram à Justiça. Em 1992 um tribunal americano estabeleceu que a Panam (e sua seguradora) eram responsáveis pelo embarque da maleta que carregava a bomba. O jogo virou.
A seguradora negociou um acordo com os familiares dos americanos mortos e acredita-se que a conta ficou em torno de 500 milhões de dolares. Depois foi a vez dos escoceses em cujas cabeças caiu o avião. Novo acerto, desta vez girando em torno de 500 mil dólares para cada família.
O acordo desta semana encerrará a discussão. Estima-se que cada família receberá 800 mil dólares.
Isso é o que acontece na Inglaterra. E em Pindorama? Surpresa: a situação aqui só continuará ruim se os cidadãos desistirem de ir buscar aquilo que julgam ser seu direito.
Para quem não estrila, a situação é a seguinte:
O Codigo Brasileiro de Aeronautica fixa a indenização para os familiares dos passageiros mortos em algo como 25 mil reais. Para a carga, a indenização é de 20 dolares por quilo. Disso resulta que uma pessoa vale 1.250 quilos de seja lá o que for.
No caso das vítimas que estiverem no chão, a conta se relaciona com o peso do avião. Um Fokker 100, com 45 mil quilos, paga 500 mil reais e esse dinheiro tem que ser dividido entre as vítimas (duas) e os danos (10 casas). Trata-se de uma lei doida, pois permite que a indenização de um sujeito que não tinha nada a ver com o vôo, e que esteja a caminho da rodoviária porque tem medo de avião, seja menor do que a de uma pessoa que embarcou no avião.
As vacas brasileiras
Esse sistema, desenhado em convenções internacionais para proteger as companhias aéreas, está desmoronando. Inclusive no Brasil, há casos de tribunais que dão razão aos representantes das vítimas. Alguns exemplos:
- No processo da viúva de um comissário da Varig, morto em 1986, na queda de um Boeing em Abidjan, o Superior Tribunal de Justiça rompeu a teto da indenização, entendendo que a empresa teve responsabilidade no acidente. Nesta terça-feira a 6ª Câmara do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo decidirá o destino da demanda de outras 16 famílias. Nesse processo já houve de tudo. A Aeronautica chegou a negar à Justica o relatório das causas do acidente, produzido na Costa do Marfim. Ele inculpava a Varig.
- Um tribunal paulista mandou que a Caribean Air Cargo pagasse bem mais que os rotineiros 25 mil reais que vigoram para os cidadãos por cada uma das 87 vacas que chegaram mortas a Cumbica em 1989, vindas dos Estados Unidos. Pelas normas, valeriam em torno de oito mil dólares por cabeça. Tendo-se provado que elas morreram por um problema de despressurização, a Corte estipulou que a empresa deveria pagar pelas vacas, pelo leite que viriam a produzir e pelos bezerros que haveriam de parir (doze para cada uma). O caso deu em nada porque a empresa voava com o seguro vencido e os interessados não quiseram processar a Direção de Aeronautica Civil por incúria.
- Num outro caso, com o Federal Express, a vítima foi um botijão com 200 embriões de gado. A 20 dólares o quilo, a conta ficaria em 900 dolares. O tribunal mandou cobrar 58 mil dólares, levando em conta o prejuízo resultante da perda do que viriam a ser 200 bons bezerros.
Uma grande oportunidade
O que está em questão é o valor que se atribui às vidas humanas. (É uma pena que haja mais casos de aumento das indenizações pela perda das mercadorias do que pela perda de vidas, mas isso faz parte do jogo que se joga nesse tipo de negócio.)
No caso do voo 402 a maioria das famílias das vítimas tem meios, tempo e talvez paciência para ir buscar seus direitos na Justiça. Desta vez não morreram nordestinos pobres de Caruaru, velhos abandonados da Santa Genoveva ou lavradores sem-terra de Curionópolis.
Estabeleceu-se que cada vaca do vôo da Caribean valia perto de 25 mil dólares. Não faz muito sentido sustentar que um executivo bem colocado, no esplendor de sua vida familiar e profissional, valha mais ou menos a mesma coisa. As famílias dos mortos de Lockerbie provaram que isso não é verdade.

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