São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Show de pirotecnia

JOSÉ EDUARDO DUTRA

O governo produziu um novo show de pirotecnia e "mise-en-scène" ao lançar um conjunto de medidas que modifica parcial e superficialmente a legislação sobre a administração pública, a Previdência Social e a gestão das empresas estatais, destinado a combater o déficit fiscal, com a previsão de gerar ganhos fiscais na ordem de R$ 6,5 bilhões.
O propósito do governo foi "mostrar serviço" para os investidores estrangeiros e o mercado financeiro, a fim de responder às críticas quanto ao seu imobilismo na questão da redução do déficit fiscal e, consequentemente, garantir fôlego e apoio ao projeto de reeleição do presidente Fernando Henrique.
A forma do pacote recorre novamente a expedientes arbitrários, ao privilegiar a edição de medidas provisórias para legislar sobre temas que não são urgentes e que já se encontram em fase de apreciação e votação no Congresso Nacional.
Quanto ao conteúdo das propostas, o pacote revela a essência autoritária do governo, atropela a Constituição, elege os servidores como bode expiatório dos problemas da administração pública e escamoteia as verdadeiras causas do desequilíbrio das contas nacionais.
A iniciativa do governo explicita a sua incapacidade de dar rumos consistentes à política de estabilização. Analisando as medidas além da superfície, veremos que os cortes reais de gastos são bem mais reduzidos do que o governo anuncia. Contudo, admitindo-se as metas de R$ 6,5 bilhões anunciadas pelo governo, verificamos que R$ 2,5 bilhões (ou 38,5%) referem-se a possíveis ganhos de receita provenientes da melhoria da administração tributária, por meio da contratação de 2.000 auditores fiscais e 600 procuradores da Fazenda.
Ocorre que essa previsão de receita adicional fica longe de se equiparar à compensação exigida em decorrência da isenção do ICMS sobre os produtos primários e semi-elaborados de exportação, que custará aos cofres do governo aproximadamente R$ 3,6 bilhões em 1997, e cerca de R$ 4,8 bilhões a partir de 1998.
Os R$ 2 bilhões decorrentes da limitação de dispêndios de custeio das empresas estatais e os R$ 250 milhões relativos à venda de ativos não-operacionais dessas empresas (34,6% do ganho anunciado) representam uma meta pouco factível. A desconfiança sobre esses números se baseia no registro das experiências fracassadas do atual governo, ao tentar espremer as empresas estatais com cortes das despesas de custeio, de maneira linear e com critérios duvidosos.
O corte das despesas de pessoal, que vem sendo alardeado pelo governo como a grande solução para o desequilíbrio fiscal, também resulta em um impacto pouco expressivo sobre o déficit público. Somadas todas as medidas propostas para reduzir esses gastos, atinge-se o montante de R$ 1,25 bilhão, sendo que apenas duas das medidas, a exoneração dos funcionários não estáveis e o fim da licença-prêmio, representam 65% do total (ou R$ 822 milhões). Os demais 20 pontos somados (proibição de horas extras, corte de remuneração de dirigentes sindicais e outros) poderão gerar uma economia de R$ 435,5 milhões, pouco mais de 1% da folha total de R$ 42,3 bilhões.
As alterações na legislação previdenciária, cujos efeitos não foram valorados pelo governo, misturam a agressão contra direitos básicos dos trabalhadores, como a supressão da previsão legal de computar o tempo de trabalho no campo para fins de aposentadoria na área urbana, com a eliminação de privilégios inaceitáveis como a aposentadoria dos juízes classistas.
Não é demais lembrar que, enquanto a base governista aprova periodicamente leis que promovem o parcelamento em 30 anos de dívidas de empresas inadimplentes, que, somadas, chegam a R$ 50 bilhões, sem contar o perdão de multas e juros de mora, o governo tenta compensar sua ineficiência na gestão da Previdência Social com o falso discurso de austeridade sobre o trabalhador rural e os servidores públicos.
O projeto do governo contém outras contradições e demonstrações de uma gestão administrativa incompetente e canhestra. Por que o governo somente agora decidiu chamar os fiscais e procuradores da Receita Federal aprovados nos concursos de 1991 e 1994? Por que esse governo não exonerou os milhares de funcionários contratados sem concurso público no apagar das luzes do governo Itamar Franco? Por que o governo condicionou à reforma constitucional as medidas -diga-se de passagem, justas- para aumentar a arrecadação previdenciária?
A maior evidência de que as medidas do governo exalam perfumaria é a omissão de qualquer referência à política cambial e às taxas de juros nas medidas supostamente preocupadas com a redução do déficit público.
Está claro que a manutenção da política cambial cria uma armadilha para a política econômica do governo, agravada pelas operações de socorro aos ruralistas e ao setor financeiro, pelo custo da renegociação da dívida dos Estados, pela conta a pagar em função da desoneração do setor exportador e pelos elevados encargos financeiros pagos em decorrência da elevada taxa de juros para financiar a dívida pública.
Portanto, a raiz do problema está justamente na supervalorização do câmbio, na política monetária restritiva, nas operações de socorro para os setores atingidos pela estabilização monetária, nos níveis alarmantes de sonegação tributária que comprometem a arrecadação e a paralisia da reforma tributária, que a maioria governista não prioriza.
Chega-se à conclusão óbvia de que é impossível resolver um déficit produzido por gastos de mais de R$ 20 bilhões com medidas demagógicas, como o corte do salário de diretores sindicais, o cancelamento de horas extras e o fim das gratificações pagas na substituição de superiores hierárquicos.
Lembrando um reclame publicitário da ocasião -desemprego, inadimplência, falência, desequilíbrio fiscal-, nada disso interessa ao governo. O importante é garantir o sucesso do projeto de reeleição para que o nosso ex-príncipe da sociologia possa se perpetuar no poder, naturalmente com a valiosa colaboração, discreta e ética, do ministro Sérgio Motta.

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