São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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A "cláusula social" no comércio internacional

LUIZ FELIPE LAMPREIA

"... the discussion of international trade issues (...) is marked by deep ignorance -all the deeper because it often poses as sophistication."* Paul Krugman, "Pop Internationalism", pág. 70

Aproximando-se a reunião ministerial de Cingapura -que fará a revisão crítica da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do seu futuro-, a "cláusula social" ganha mais atenção. Diz-se que ela estará no centro da agenda e será a grande linha de conflito entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre "progressistas" e "retrógrados", entre os que defendem e os que resistem às melhorias para os trabalhadores. E o Brasil seria singularizado sob foco negativo no capítulo da cláusula social.
Há erro e mistificação nessas suposições. É engano pensar, por exemplo, que todos os países desenvolvidos propugnam a inclusão da cláusula social na OMC ou que haja consenso entre eles sobre o assunto. Embora enfrentem o desemprego, e a cláusula social tenha para eles forte apelo político, diversos desenvolvidos mantêm perfil discreto na matéria, enquanto outros são contrários à introdução de elemento estranho ao comércio e imprevisível nas suas consequências na estrutura jurídica da OMC.
A União Européia está dividida, e sua posição deverá ser o mínimo denominador comum. Se o tema figurar na agenda de Cingapura, será de forma diluída, entre vários outros. E o embate entre o ativismo de uns e a militância contrária de outros estará reduzido a poucos países, entre os quais o Brasil certamente não se encontrará.
Tem sido frequente a confusão em torno da cláusula social. Idealmente, ela permitiria medidas de caráter multilateral -sanções, direitos compensatórios, salvaguardas- contra países cujas práticas trabalhistas não estejam de acordo com padrões mínimos mundiais, definidos em função do que vige nos países industrializados.
Baixos salários, regimes de sobreexploração do trabalho, trabalho escravo, de presos ou infantil, restrições à liberdade sindical e outros seriam passíveis de punição pela comunidade internacional. A cláusula social seria a garantia adicional de que os trabalhadores contem não com a vaga simpatia, mas com pressões internacionais concretas por melhores condições de trabalho.
Mas isso num mundo ideal. Na prática, padrões trabalhistas para regular o comércio internacional poderiam abrir o caminho para um sem-número de medidas e práticas nitidamente protecionistas -inclusive unilaterais, a exemplo da utilização da famosa seção 301 da lei de comércio dos EUA, que já nos atingiu duramente, com sanções muito prejudiciais.
Sendo mais difícil hoje ser abertamente protecionista, o protecionismo se traveste. O social se transforma em justificativa para a proteção abusiva de setores que se sintam prejudicados pela concorrência de produtos de outros países. Os padrões trabalhistas servem não ao propósito de promover melhorias nas práticas dos países afetados, mas sim para disfarçar novas medidas de protecionismo, novos gestos em relação aos que enfrentam o desemprego estrutural.
Mais: os efeitos punitivos dessas medidas podem se dar não sobre as áreas ou atividades em que se verificam os padrões trabalhistas ruins que se deseja em tese corrigir, mas sobre áreas que competem com vantagens no mercado internacional.
Empresas e trabalhadores de setores competitivos pagariam o preço de mazelas e problemas de outros setores ou regiões específicas -problemas que devem ser corrigidos e enfrentados com os instrumentos apropriados, como as convenções da OIT, a legislação interna, a aplicação da justiça, as reformas sociais e econômicas.
Embora tenhamos nossos problemas na área trabalhista e social, nosso país não é o alvo principal dos que acusam a concorrência de países do Terceiro Mundo como causa do desemprego estrutural na maioria dos países desenvolvidos.
Não participamos do comércio internacional à base de salários iníquos, do uso intensivo de trabalho infantil, escravo ou de presidiários. Ao contrário: temos ampla liberdade sindical, plenas garantias democráticas e alguns setores competitivos onde se pagam salários mais altos do que a média dos países em desenvolvimento. Também sofremos alguns efeitos adversos oriundos das práticas trabalhistas de países que competem conosco em nosso próprio mercado e em terceiros mercados.
Felizmente, as lideranças sindicais brasileiras demonstram ter consciência da complexidade do tema, não caindo em simplificações ou na ingenuidade de achar que o único propósito dos que defendem a cláusula social é a melhoria das condições de vida dos trabalhadores do mundo em desenvolvimento.
O governo brasileiro tem mantido consultas com os setores da economia diretamente interessados nesse e nos demais temas da agenda de Cingapura e defenderá lá, como sempre tem feito, os interesses da sociedade brasileira e não teorizações ou abstrações de gabinete. Seria um erro de graves consequências comerciais, econômicas e, sobretudo, sociais achar que nossa lição de casa em matéria social pode ser substituída pela cláusula social.

*"... a discussão sobre questões de comércio internacional (...) é marcada por uma profunda ignorância -ainda mais profunda porque frequentemente aparenta sofisticação."

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