São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 1996
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Emenda da reeleição é a grande reforma do governo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A emenda da reeleição não ajuda nem, muito menos, atrapalha a agenda de reformas do governo FHC. A reeleição é a grande reforma do governo, é a política das políticas, a partir da qual o governo poderá, finalmente, organizar sua agenda de reformas constitucionais, até hoje atabalhoada.
Quem expõe o raciocínio é o cientista político carioca Renato Lessa, 42, diretor-executivo do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro) e professor titular de ciência política da Universidade Federal Fluminense.
Segundo Lessa, o governo FHC tem na verdade dois governos num só. O primeiro é o governo extraordinário, que aposta tudo nas reformas constitucionais como condição para governar o país.
O segundo governo é o ordinário, praticamente ausente, pálido, anêmico, cuja única obra relevante é a manutenção da estabilidade econômica. Essa prevalência do governo extraordinário sobre o ordinário coloca o país em "situação de hipoteca", sustenta Lessa.
Mesmo reconhecendo qualidades no grupo que está no poder, ele alerta para o risco de um "projeto oligárquico", cujo objetivo seria a restrição do espaço democrático.
Essa nova oligarquia estaria se impondo, segundo Lessa, não segundo os velhos hábitos e modos truculentos, mas de forma "ilustrada", através de sofisticadas manobras institucionais como a defesa do voto distrital e a redução do número de partidos no Congresso.
Tudo isso somado, se aprovado, vai resultar numa brutal redução do espaço democrático no país. Segundo ele, é preciso acabar com essa mania de querer transformar o Brasil num imenso laboratório institucional, como se a nação fosse a sala de experimentos de um bando de professores Pardal, isto é, dos tucanos pensantes.
A entrevista a seguir foi realizada na última reunião da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG).
*
Folha - A palavra reforma virou uma espécie de vaca sagrada dentro do governo. Só se fala na necessidade das reformas, mas a verdade é que o termo recobre realidades muito distintas, que nem sempre são bem explicitadas.
Lessa - As reformas que o governo vem promovendo fazem parte de uma agenda mundial e, em grande medida, inevitável. Modernização da máquina do Estado, reforma administrativa, reforma fiscal que permita um setor público auto-financiável, reforma da educação, tudo isso é inevitável para vários países. Claro que há confusão nisso tudo. Mas veja. Poucos países tiveram que enfrentar uma agenda tão pesada em prazo tão curto. Estamos enfrentando decisões cruciais a toque de caixa, com uma baixa institucionalização do sistema político. É sem dúvida uma sobrecarga.
Folha - Uma sobrecarga que foi posta pelo próprio FHC.
Lessa - Este é o ponto. Eu já disse que esse é um governo dogmático, cujo programa fundamental é um programa de reforma constitucional. Não é um governo ordinário. Há a idéia nesse governo de que só é possível governar se reformas extraordinárias forem implementadas. Você praticamente coloca o país numa situação de hipoteca. É um governo de altíssimo nível, mas que só governará se a Constituição for transformada.
Folha - Isso muda a relação entre Executivo e Legislativo.
Lessa - Exato, há um atropelo do Congresso. A iniciativa legislativa desse governo é extraordinária. O Executivo controla, via projetos de lei, medidas provisórias, praticamente 90% da pauta do Legislativo. É uma relação muito complicada com o Congresso, que está ligada ao excesso de funções legislativas do Executivo. A agenda do Congresso está entupida.
Folha - A reeleição virou a peça chave dessa agenda. Ela ajuda ou atrapalha o projeto de reformas?
Lessa - A reeleição é a grande reforma, a reeleição é a política das políticas e o governo tem força parlamentar para fazer passar a reeleição. Desde o início do mandato, nunca ficou claro qual reforma tinha precedência sobre as outras. Acho que o próprio governo não sabia disso. Havia uma certa confusão por parte dos estrategistas. Agora, acho que eles descobriram qual é a reforma das reformas. É a reeleição. Ela estrutura a estratégia de reformas constitucionais, entre outras coisas porque alonga no tempo a possibilidade de se estabelecer barganhas com o Congresso. O governo percebeu que essa é a reforma prioritária.
Folha - O José Luís Fiori, centista político da UFRJ, diz que FHC assumiu, enquanto presidente, a condução política de seu antigo objeto de estudo -que era a burguesia industrial. Segundo a análise, FHC estaria atualizando nosso capitalismo dependente e associado, porque teria percebido uma brecha para o Brasil no rearranjo da ordem internacional.
Lessa - É muito interessante essa análise, mas confesso que tenho dificuldades de pensar dessa maneira um pouco cósmica. Acho que a questão é saber como você organiza as forças políticas e viabiliza um projeto de poder no país.
Folha - Mas tem o lado externo, fundamental para viabilizar o projeto. As constantes viagens de FHC ao exterior apontam para isso.
Lessa - Isso é inerente ao exercício da Presidência num país moderno. Isso aqui não é uma republiqueta isolada do mundo. É fundamental termos hoje uma agenda externa muito bem estruturada. Há dinâmicas internacionais que fogem do nosso controle. O nosso problema é saber o "timing" disso, quais os ajustes internos que você vai fazer em função delas. Enfim, como é que vamos nos globalizar, esse é o problema. Você pode globalizar com políticas compensatórias de habitação, saúde etc.
Folha - Os críticos de FHC dizem que não há políticas públicas.
Lessa - Isso de fato não está sendo tocado. É a ausência do governo ordinário. Eu gostaria que existisse um governo FHC que também tocasse questões ordinárias, que fizesse em outras áreas o que Paulo Renato está fazendo.
Folha - FHC estaria subordinando esse governo ordinário à aprovação das reformas extraordinárias?
Lessa - Exatamente. Há uma inércia muito grande. A sensação é de que o governo ordinário se resume hoje a ser o guardião da moeda, da estabilidade.
Folha - Pelo menos em âmbito nacional, não há oposição hoje no país. O PT em parte se esvaziou porque ainda não soube se reorganizar desde o massacre que lhe foi imposto pelo Real, e, em parte, foi esvaziado por um governo que insistiu em identificar nos seus adversários os "inimigos do Brasil".
Lessa - Ainda estamos vivendo a perplexidade do fato de o melhor candidato de esquerda ter sido eleito por uma coalização de centro-direita. Esse é um ponto. O outro é a avaliação totalmente equivocada do Real pelo PT. Em terceiro lugar, o impacto do Real sobre a sociedade. Mas é verdade que o Fernando tem uma posição muito arrogante em relação à oposição. Ele se trai no discurso com muita frequência. Diz a toda hora "as reformas que o Brasil quer". É como se ele fosse capaz de escutar a partir de seu quarto a voz do país inteiro. Ele se refere à oposição de maneira muito pouco democrática, confundindo minoria com erro. Dito isso, não podemos esquecer a parcela de responsabilidade da esquerda. Ela ainda não tem uma alternativa ao que está aí.
Folha - Algumas pessoas de esquerda costumam dizer que o problema do governo não é o PFL, mas o PSDB. O PFL está se libertando da imagem fisiológica?
Lessa - Não há como negar que há dentro do PFL a persistência de estilos políticos de corte tradicional. É ingenuidade supor que hoje o PFL é uma legenda convertida à modernidade. Dá o apoio leal ao governo, mas ele paga o preço por isso. E o preço maior talvez seja o prejuízo do conceito de modernização que se pretende realizar.
Folha - Qual sua posição a respeito do voto distrital, voto facultativo e outras reformas políticas?
Lessa - Voto distrital, voto facultativo e cláusula de barreira, isso tudo combinado tem o impacto de redução da participação política. É uma perspectiva oligárquica forte de redução da extensão democrática no país. Não estou falando mais de oligarquia agrária, mas de oligarquia ilustrada, democrática, que opera lá em cima. É uma engenharia oligárquica, como se o país fosse um laboratório institucional. Ficam aqueles gênios, um bando de professores Pardal, imaginando qual seria o melhor desenho institucional para o país. É um perigo para quem não tem tradição democrática. É preciso dar durabilidade às instituições.

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