São Paulo, terça-feira, 19 de novembro de 1996
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Diversas formas de assassinar um obelisco

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O tempo passa, e eu não me acostumo. Penso: deve ser loucura minha. Nada tenho contra o arquiteto que o construiu. Só não consigo assimilar o obelisco do Bar Vinte.
Os arquitetos não reclamam? Só vi protestos de Maria Elisa Costa e Sabino Barroso. E os outros? Será que estão todos construindo os eternos plágios de granito-rosa e colunatas cafajestes do Philip Johnson, no prazer sórdido de renegar um século de boa arquitetura?
A pós-modernidade é o paraíso dos medíocres. Ela justifica qualquer picaretagem em nome da desesperança. Eu tento deixar correr, mas cada vez que passo no Bar Vinte, meus pêlos se eriçam "como as cerdas bravas do javali" e penso na frase de Casé aos críticos: "Eu gosto. Não me importam as opiniões".
Isto, como se ele fosse o Duchamp exibindo o urinol no Salão de Outono. Só que se trata de uma obra pública! Se fosse uma obra pessoal eu diria: "Claro, deixem o bom Casé se expressar contra o mundo!". Mas não é. Por isso, em nome da nossa liberdade, aqui vão sugestões técnicas e estéticas para a destruição do obelisco:
* A mais simples seria uma ação jurídica popular contra o escândalo estético. (Dizem que Cesar Maia estaria louco pra que isso acontecesse, já que esse obelisco quase queimou seu filme). O prefeito Conde, obedecendo a vontade do povo, mandaria derrubar o obelisco, entre cânticos e aplausos.
* Solução cultural: tombamento do obelisco pelo Patrimônio Histórico (tombamento real com motoserra e dinamite).
Se medidas legais não funcionassem, teríamos medidas escusas, de sabotagem silenciosa, no estilo inventivo do carioca. Vejam.
* Um engenheiro irado me deu a solução técnica. Toda noite, ipanemenses em revezamento fariam infiltrações de ácido clorídrico na base do monumento, tanto no obelisco quanto na "passarela do nada". Aos poucos, o ácido iria corroendo o concreto e os vergalhões de ferro, até o desmoronamento suave do absurdo.
* Uma solução bem carioca e boêmia poderia ser o xixi persistente nas bases. O amoníaco do xixi, com o tempo, também minaria os alicerces. Esta é a razão por que os postes de antigamente tinham uma proteção contra o xixi dos cachorros. Infelizmente, o método não poderia ser aplicado aos "postes bêbedos" que, espertamente, já têm uma couraça amarela na base. De qualquer modo, criar ali o "mijódromo" seria uma lenta corrosão desmoralizadora.
* Solução violenta: caminhão bomba. Linha mais dura a ser adotada em ações de "blitzkrieg" por organizações radicais como o FLHO (Frente de Libertação Helio Oiticica) -guerrilheiros da arte contra o mau gosto.
* Outra sugestão técnica: grandes lentes estrategicamente colocadas nos apartamentos, concentrando o calor do sol sobre o obelisco que, feito de estranho material plástico, derreteria aos poucos, broxando lentamente.
* Ponto de encontro balístico. As balas perdidas poderiam ter ali um pombal, um refúgio, um alvo preferido. Criar na região, nas favelas próximas ao largo, o sadio hábito de "tiro ao obelisco", dando preferência, é claro, à esfera armilar que encima o dito pirocão que, com sua lâmpada sinistra, ilumina a insônia dos pobres moradores.
Se soluções mais violentas não funcionarem, podemos lançar mão de formas culturais de ataque ao obelisco. Convocação de nossos melhores grupos grafiteiros, o "zruz", o "craws", o "slurps" e mesmo velho e saudoso "celacanto provoca maremoto" ou ainda o lendário "lerfa mu", que cobririam o pirocão de hieroglifos. Aos estrangeiros perplexos, diríamos que é um monumento ao pintor Basquiat ou à alma transgressiva de nossos meninos de rua artistas.
* Macumba na encruzilhada. Uma boa solução: transformar o obelisco num centro de romarias afro-brasileiras. Noites seguidas de cantorias e pontos de candomblé, a ponto de as autoridades, por racismo, agnosticismo ou desespero, derrubarem o totem místico.
* Pomba. Uma vez aberta a esfera armilar do topo, aquilo viraria um refúgio de pombos, reunidos à custa de muitos punhados de milho. A massa de caganeiras pombalinas transformaria o obelisco num muro de excremento, forçando sua remoção pela Comlurb ou, ao menos, o desprezo repugnado de transeuntes.
* O largo do obelisco poderia virar um espaço cultural, com aulas permanentes sobre o que é a arte. Gerações de estudantes aprenderiam que arte é tudo aquilo que "não" é o obelisco. Assim, humilhado por rajadas de teorias, talvez houvesse o "efeito autocrítica" no arquiteto, que renegaria a obra.
* Suicídios. Convencer melancólicos e deprimidos em geral de que a "passarela do nada" pode ser um bom ponto para a morte. De noite, eles poderiam galgar com escadinhas o alto da ponte azul e, de lá, escolher dois tipos de morte: atiramento simples no asfalto ou suicídio com "bate-pronto", quando a queda é sincronizada com o ônibus passando (pá, pum!). Aos poucos, isso criaria uma aura fúnebre no local.
* Convidar o escultor conceitual John Christo, famoso por seus embrulhamentos de paisagem, para vir amarrar o pirocão. Ele envolveria o negócio em plástico e papel de embrulho como um suporte escrotal ("jockstrap") ou faria um box de chuveiro em volta. Teríamos uma obra tapando outra e, como Christo é gringo e prestigiado, a Unesco poderia declarar a obra embrulhada "patrimônio da humanidade", e não veríamos mais o pirocão. A obra acoplada Casé-Christo viraria um ícone da pós-modernidade e, talvez, críticos e curadores da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza mandassem castrar a obra para fazê-la viajar pelo mundo. Poderia até descolar algum prêmio para nosso Brasil.
* Periodização do obelisco. Em dezembro, viraria árvore de Natal (a começar este ano, para fazer "pendant" com a árvore flutuante da Lagoa). Em dia de São João, viraria pau-de-sebo, com multidões galgando-o. No Carnaval, ora... um imenso manjubão momesco. No Dia da Pátria, espada ou lança de Caxias. Na Semana Santa, seria coberto de pano roxo. Fim de ano, cascata de fogo...
É isso aí. Meu protesto não vai adiantar. Mas, no futuro, quando os homens tentarem entender aquela coluna do mal, ao menos saberão que um pobre escriba da época morreu lançando-lhe maldições.

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