São Paulo, terça-feira, 19 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pito bem-vindo

ANDRÉ LARA RESENDE

Os jornais deram que, em encontro recente no Chile, Alain Touraine passou um pito no presidente Fernando Henrique. Touraine é professor da Sorbonne, respeitado especialista em América Latina, de quem Fernando Henrique foi colega no período em que, se não me engano ainda exilado, foi professor visitante em Paris.
Segundo Touraine, o Estado brasileiro é fraco e o governo faz menos do que devia para reduzir as disparidades sociais e a miséria. Teria ele razão?
Antes de qualquer coisa é preciso reconhecer que somos um país de contrastes sociais além do tolerável. Estamos cansados de sabê-lo, mas até mesmo por isso é preciso que nos chamem a atenção vez por outra. É da natureza humana a tudo habituar-se.
De tanto conviver com a miséria e a desigualdade, somos tomado de um torpor, as defesas psíquicas acionadas e nos alienamos do absurdo da desigualdade e do sofrimento vizinho.
Há algo a ser feito? É evidente que sim. As grandes diferenças sociais são frutos da história e não são passíveis de serem revertidas da noite para o dia. Exigem, além da consciência e da determinação de reduzi-las, tempo, muito mais tempo do que seria desejável. Isso não deve evidentemente ser usado como justificativa para o imobilismo.
Tenho especial implicância com todo tipo de iniciativa, cada vez mais frequente entre nós, cujo objetivo é facilitar o convívio com a desigualdade. São essencialmente iniciativas conservadoras e segregacionistas.
Explico. Grandes desigualdades, numa sociedade aberta, democrática e com meios de comunicação modernos, serão inevitavelmente fonte de violência e de criminalidade.
A reação nos grandes centros urbanos brasileiros tem sido a pior possível: no lugar da reflexão e da ação pública, multiplicam-se as iniciativas privadas de defesa e segregação.
Os condomínios murados e fechados, as casas com guaritas que são verdadeiras casamatas, as polícias privadas, as portarias que exigem dos visitantes identificação como se fossem criminosos, o uso de carros blindados, são exemplos de uma perigosa atitude que se dissemina. Uma atitude que combina o conformismo conservador com um profundo descrédito pela iniciativa pública. Não se confia mais no Estado nem mesmo para o desempenho de suas funções básicas e essenciais. Não é assim que se desenvolve a cidadania, não é assim que se cria um mínimo de solidariedade.
Volto então ao pito de Touraine. Poderia ser tomado como mais uma crítica ao que se convencionou chamar de modelo neoliberal, ao Consenso de Washington, que segundo os críticos é a cartilha do governo Fernando Henrique. Engano. Trata-se de um puxão de orelhas bem-vindo para que se acelerem as reformas estruturais e a reforma do Estado em particular.
Não há capitalismo competitivo sem o quadro institucional e jurídico adequado, sem um mínimo de homogeneidade e de igualdade de oportunidades e, sobretudo, não há nação sem um mínimo de solidariedade social. A confiança no Estado é fundamental.
O Estado precisa ser reorganizado, o funcionalismo reduzido e valorizado, a formação e a carreira do servidor público modernizada. Sem isso, não há como pretendermos mudar o quadro terrível e desolador que se delineia nas nossas grandes cidades.

Texto Anterior: Romeos y Julietas
Próximo Texto: Reeleição e reforma política
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.