São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 1996
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Desinflação competitiva

ANTONIO DELFIM NETTO

Um dos aspectos mais curiosos do comportamento dos formuladores da política econômica é a incessante busca de originalidade retórica. A atual política cambial tenta ser caracterizada como a última palavra ditada pela moderna "ciência" econômica.
Sobrevalorizar o câmbio e esperar que todo o sistema produtivo se ajuste a ele não é visto como o que realmente é: uma manifestação absurda de voluntarismo, mas como o "dernier cri" do conhecimento.
Poucos países levaram à frente durante muito tempo política como essa, devido aos seus altíssimos custos sociais. Mas ela é velha e vem sendo discutida na França desde a administração de Raymond Barre, em 1976, e posta efetivamente em prática a partir de 1986. Depois, muitos países fizeram o mesmo. O seu nome é desinflação competitiva ("desinflation compétitive").
De fato o sistema europeu de taxa de câmbio ("european monetary system" -EMS) que funcionou entre janeiro de 1987 até explodir em setembro de 1992 era pouco mais do que isso.
A França sempre utilizou, na sua disputa com a Alemanha, a taxa de câmbio para aliviar os constrangimentos externos impostos pelo seu crescimento acelerado. A posição francesa se alterou depois de 1986 com o claro objetivo político de tentar transformar o franco numa moeda de reserva alternativa.
A ancoragem do franco no marco impôs uma imensa "austeridade" interna, principalmente a eliminação dos mecanismos de correção salariais e a imposição de que os salários teriam de obedecer à inflação prospectiva (definida pela convergência à inflação alemã). Isso de fato ocorreu: no período 1978/87, o custo de vida havia subido à taxa de 3,1% ao ano na Alemanha e à taxa de 8,6% na França. Nos últimos três anos, a taxa média alemã foi de 2% e a francesa de 1,9%.
Os mais jovens talvez ignorem que os três "milagres" do após guerra, a expansão da Alemanha, da Itália e do Japão, foram todos auxiliados por dezenas de anos de taxas cambiais extremamente subvalorizadas e que permaneceram nominalmente constantes dentro do critério de Bretton Woods até praticamente a introdução do câmbio flutuante no início dos anos 70.
Aquelas taxas de câmbio foram deliberadamente "folgadas" pelas autoridades militares de ocupação, com a intenção de facilitar a recuperação daqueles países.
Em que consiste, afinal, essa desinflação competitiva? Em manter o câmbio valorizado e esperar que as forças do mercado, por meio da pressão didática imposta sobre os salários pelo desemprego, ajustem o custo unitário por unidade produzida. A França tinha uma taxa de desemprego média de 8,2% em 1978/87 e nos últimos três anos registrou a taxa média de 12,1% e continua esperando que o mundo aceite o franco como moeda de reserva...
O que se "acredita" é que, com tempo suficiente, a economia ajuste o seu nível de produtividade de preços e de salários nominais ao exigido pelo câmbio e a partir daí (em quantos anos?) o país entrará num círculo virtuoso de rápido crescimento com estabilidade interna e externa. Isso não é uma teoria, é uma religião que impõe enorme sofrimento -desnecessário- aos trabalhadores e empresários brasileiros.

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