São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 1996
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Pixote, o filme, a vida e o homem do cobertor

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O homem do cobertor quase me assaltou naquele sábado. Mas eu só não disse nada a ninguém porque "ser quase assaltada" já virou rotina.
E porque, certos dias, você percebe logo quando só lhe querem se você estiver feliz e risonha, sem problemas. Homem do cobertor... São mendigos que andam pelas ruas de São Paulo enrolados num cobertor imundo, cinzento, cercado de varejeiras e percevejos.
Às vezes são adultos, às vezes, adolescentes. São perigosos, guardam canivetes, cacos de vidro ou lascas de pedra debaixo dos cobertores, assaltam motoristas e pedestres, vivem debaixo dos viadutos, são ratos de sinais de trânsito.
Naquele sábado, fingi -ninguém, no fundo, quer ouvir as lamúrias dos outros. Tudo bem. Era, afinal, um ótimo sábado para bandear para o lado dos criminosos, pois eu estava com raiva. "Com raiva, sem medo." É como: "sem memória, sem consciência", dessas máximas convenientes.
Quando o homem do cobertor se aproximou, fuzilei-o com os olhos, escutei-o engrolar as exigências de sempre por trás do vidro fechado do meu carro. "Passa isso ou eu te furo, passa aquilo ou não sei quê".
Acelerei, respondi com disparates, gritando palavrões de todo tipo, pisando no acelerador feito uma doida, buzinando, pouco me importando se o motorista da frente entendia ou não os meus sinais.
O homem do cobertor tinha interrompido o bodejo e ria da minha cara. O sinal abriu enfim, e eu puxei, cantando pneu. Uma merda essa vida de cidade grande. Depois, já dentro do cinema e dentro do filme -"Pixote, a Lei do Mais Fraco", de Hector Babenco-, para surpresa minha, lá estava de novo o homem do cobertor.
O filme, feito há 16 anos e reestreando em cópias novas, conta a história mesma de como nascem os homens do cobertor, em sua educação de caserna nos reformatórios públicos, de como eles se formam ali ladrões e assassinos. Há cenas inteiras em que meninos pequenos já arrastam seus cobertores pelos pátios da Febem.
A fita tem um hiper-realismo que impressiona, que incomoda sem emocionar -mas que disse bem aos instintos de destruição do meu sábado.
Na semana anterior, eu entrevistara a viúva do ator de "Pixote", Fernando Ramos da Silva, o menino favelado que virou ator precoce e marginal por força das ilusões da vida.
É esse o assunto do outro filme -"Quem Matou Pixote", de José Joffily. A película é tocante pela interpretação dos atores. Mas o drama da vida imitando a arte não comove.
Fica claro que a polícia matou Fernando Ramos da Silva. Mas de que servem as denúncias em forma de filme ou livro? Meninos são criados como cobra nas Febens até hoje.
Fogem desses internatos de loucos ou rebelam-se todos os dias. Melhor levar patada lá fora, afinal, aprendendo a astúcia das ruas.
Desalento total. Sábado, um bom dia para morrer. Saí do cinema preparada para enfrentar o próximo homem do cobertor -melhor ser morta por um deles, afinal, do que pelo tiro de um policial.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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