São Paulo, terça-feira, 26 de novembro de 1996
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Entre a esmola e o assalto, o coração balança

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A esmola
Olho o menino que vem em minha direção. Estou no volante do carro, no engarrafamento. Ele vem pedir esmola. Eu preferia que ele não viesse. Não que ele seja agressivo; mas ele é sujo, e sua roupinha está rasgada.
Se ao menos ele viesse sozinho, seria melhor; mas ele deve ter uns 8 anos no máximo e carrega no colo um irmãozinho de talvez 1 ano. Ou seja, um menino miserável leva outro como isca para me emocionar e levar minha esmola.
Ao longe, na calçada, vejo a mãe do menino, esperando o efeito da cena. Ela trabalha nesse comércio, tão legítimo como uma exibição de cinema ou de teatro.
Assim como um dramaturgo, digamos, Grotowski, ela quer nos emocionar, a mãe também quer alcançar a empatia com o espectador e ter um sucesso de bilheteria: muitas esmolas. Ela é o verdadeiro teatro "povero". Há mendigos-sucesso e mendigos-fracasso, como no cinema brasileiro.
O menino maior (o menor dorme no colo) se comporta como bom ator. Sua voz tem um "tremolo" de desamparo e procura olhar dentro de meus olhos, se bem que eu evite olhá-lo. Mas ele consegue a suspensão de minha descrença ("suspension of disbelief"). Sou tomado de funda emoção (coisa rara, porque tenho me esforçado para não me deixar levar por sentimentos humanitários, obrigação de todo carioca moderno).
Mas, como é uma criança carregando outra (bom roteiro: o "frágil protegendo o frágil"), meus olhos ficam úmidos. Por alguns segundos, sou grato ao menino-mendigo, pois sua imagem com o bebê me deu a rara bênção da comiseração, da piedade. Eu me sinto feliz por ser tão "bondoso".
Meu primeiro impulso é dar logo um dinheirão ao menino, mas controlo-me, para não ceder ao óbvio, e dou uma esmola normal, sem olhar para o garoto que me olha sem parar. Sua mãe me olha a distância também, checando o efeito de sua "mise-en-scène". Mas eu não olho para eles.
A riqueza não olha a miséria, mas a miséria olha a riqueza. Não olho para não sentir culpa e também por motivos estéticos. A miséria não é plástica, ao menos ao vivo. Em "instalations" ou em filmes, tudo bem, já enriqueceu muitos produtores e artistas, como o menino dá lucro à mãe. O chato é que a miséria nos lembra que a morte existe. Como quero esquecer a morte, não olho o menino.
Assim que dou a esmola, tenho um tremor meio histérico contra a situação brasileira, contra os políticos e os ricos (os mais ricos que eu). Acelero o carro, e a indignação me enobrece. Santifico-me no meu ódio contra os egoístas que fazem o mal do mundo.
A esmola me consola mais do que ao menino. Estou excluído da injustiça social, já que me indignei. A injustiça é feita por outros; eu estou fora. A miséria virou apenas um "affair" mal resolvido entre o menino-mendigo e os "outros", os malvados do mundo. Ou seja, a caridade me fez bem. Foi um negócio honesto entre mim e a mãe do menino: eu dei a esmola, ela me deu consolo, sua mercadoria. Esmola também é mercado; se bem que eu acho que saí lucrando, numa espécie de mais-valia que extraí da esmola. "Good deal".
O assalto
Outro cenário seria o do assalto. Estou no carro no mesmo lugar, e um pivetão ou dois me metem um revólver na cara e me levam o relógio, talvez o carro, talvez me matem. Excluamos minha morte, por enquanto, para sentirmos o "after-taste", o "arrière gout", o sofisticado sabor do assalto.
O assalto inverte tudo. Eu sou a vítima, não mais o miserável esmoler. A pobre pessoa sou eu, num primeiro instante. Cheio de medo, tenho de soltar a grana para não morrer.
O assalto é a esmola ao contrário; você recebe a graça de viver se for humilde, se for convincente e inspirar piedade. Eles é que te dão a esmola.
Além disso, o assalto desconstrói terrivelmente o meu universo. A miséria perde seu rosto secularmente doce e triste e ganha a face da vingança. A injustiça social que se abatia sobre eles é desviada sobre você. Você é que passa a ser vítima de uma injustiça social. E, mais terrível ainda, aqueles pobres-diabos que tinham a missão de manter a sociedade funcionando na eterna e morna injustiça se rebelam e passam a ter um "quê" de político.
Há algo de revolucionário no assaltante. Nos anos 60 já foram heróis-marginais. Há um sabor de sacrilégio no assalto. O assalto não te exclui; ele te inclui. Não te salva, como a esmola.
Você é que é culpado de ter posses, não os "outros", os tais malvados abstratos. No assalto, você é vítima e culpado. Isso provoca um clima de confusão no mundo. Não estamos acostumados a essa ambiguidade. Mais ainda se você for um humanista, defensor dos pobres e oprimidos, um petista talvez. Nada pior que um petista assaltado.
No assalto, você é arrastado para um processo de incriminações e vira uma peça na vasta corrente do capitalismo selvagem, que começa talvez em Wall Street e termina ali no teu relógio.
Retraçando o mapa, vemos que teu Rolex foi comprado com o dinheiro que teu pai deixou da fazenda que o avô tinha dos tempos da escravidão. Pronto. Você faz parte do mundo dos exploradores.
Não há perdão no assalto, nenhuma redenção para nós. Além de nos levarem a grana, a culpa é nossa. Com o fim da caridade, todos nós ficamos suspeitos. O fim da caridade tem alguma utilidade. Acaba o tempo do escândalo bondoso e começa a verdade da violência.
E assim vai surgindo o "novo homem" de que falavam os ideólogos; entre a esmola e o assalto virá o futuro e as novas "soluções finais".

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