São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 1996
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O movimento PUNK no Brasil

ERIKA SALLUM
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Morte ao Sistema!".
Sesc Pompéia, São Paulo. 1982.
"O Começo do Fim do Mundo", primeiro festival do movimento punk no Brasil.
No palco, Clemente, baixista e vocalista da banda Inocentes, berra para a platéia que, melhor que acabar com os banheiros do local e dar porrada na gangue adversária, é destruir o sistema.
Além dele, 19 grupos se revezam no som. Cólera, Olho Seco, M-19, Fogo Cruzado, Ratos de Porão, Lixomania.
É o auge do movimento no país. Jornalistas e fotógrafos registram o momento histórico.
Por volta das 17h, a polícia invade o salão, acaba com o que classifica de "desordem" e leva para delegacia parte da platéia -na maioria, composta de adolescentes de 14 a 19 anos, roupas negras e cabelos coloridos e pontiagudos. Fim do primeiro ato.
"Eu sou punk?!"
Enquanto os Ramones e os Sex Pistols se apresentavam na Europa e nos EUA, bairros como Tucuruvi, Casa Verde e Vila Carolina fervilhavam na zona norte de São Paulo em 1977.
Sem saber direito em quem se espelhar, garotos de 13, 14 anos já semeavam o que seria, anos mais tarde, a explosão punk brasileira.
"Quando li na revista 'Pop' uma reportagem sobre os Pistols, pensei: 'Meu, isso é tudo o que estava procurando!', descobri que era punk", disse à Folha Zorro, ex-M-19, hoje da banda Invasores de Cérebros.
Repudiando "aquela coisinha paz e amor", hippies, MPB e tudo o que dissesse sim ao sistema, perceberam que não estavam sós e tinham muita coisa a ver com os adolescentes da periferia dos países de Primeiro Mundo.
Vinham todos de famílias pobres e trabalhavam, em sua maioria, como office-boys, bancários ou recepcionistas.
Seu futuro não era promissor e, em vez de aguentar tudo calados, resolveram gritar.
"Já nascemos punks por falta de opção. Somos a representação da nossa época", explicou Ariel, 36, ex-integrante dos Inocentes, e que também faz parte dos Invasores de Cérebros.
No início, explica, não havia tanta consciência política. Até o começo dos anos 80, várias gangues se espalhavam pela cidade e, por definição, eram inimigas.
"Era puro bairrismo, a gente brigava por causa de namorada, não sabia bem por que, mas brigava", disse João Gordo, 32, do Ratos de Porão, mostrando as cicatrizes na pele causadas pela lutas entre as gangues.
"Era uma disputa para ver quem era mais punk, de um jeito muito juvenil, coisa de molecada", completa Zorro.
Apesar da imaturidade, algumas bandas começavam a se formar -Restos de Nada, Condutores de Cadáveres, AI-5.
Os cabelos ganhavam cortes radicais, e as roupas iam ficando cada vez mais ousadas.
Mas ainda estavam longe do que se convencionou chamar "movimento punk": "As informações vinham do exterior distorcidas. As revistas demoravam para chegar e o governo militar impedia um monte de coisa", relembrou Redson, do Cólera.
Mesmo sendo em número considerável, os "protopunks" eram desconhecidos do público e da grande imprensa.
"Punk's not dead"
Em 1979, Sid Vicious, do Pistols, morre de overdose. Surgem novas formas de pop e a mídia começa a decretar o esvaziamento do movimento punk.
Mas começa uma nova década e, com ela, uma nova geração de punks, fortificados pela expressão "Punk's not dead" (O punk não está morto).
Se os Sex Pistols não existem mais, agora é vez dos Dead Kennedys, Conflict e Disorder.
Mostrando-se tão atual quanto o mundo lá fora, o Brasil torna-se palco de uma explosão de novas bandas e de um crescimento significativo de adeptos do movimento.
São Paulo é o berço por excelência. Os pontos de encontro são a estação São Bento do metrô e a loja de discos e camisetas "Punk Rock", nas Grandes Galerias, centro da cidade.
"Nos sábados, o prédio ficava lotado de punks, e várias turmas se encontravam", relembra Fábio, ex-vocalista do Olho Seco e dono da "Punk Rock" na época.
A essa altura, grupos de rock se multiplicavam pelos subúrbios. Nasciam Inocentes, Cólera, Anarcoólatras, Ulster e dezenas de outros conjuntos.
Sem espaço para se apresentar, o jeito era alugar salões dos subúrbios, como o "Deixa Falar", o "Zimbábue" e o "Teatro Luso-brasileiro", esse último localizado no Bom Retiro.
"Por causa do nosso estilo, tínhamos dificuldade em arranjar lugar para tocar. No Luso-brasileiro, por exemplo, os judeus não queriam nossa presença, já que a gente usava suástica -achavam que éramos nazistas", conta Redson.
Em 1982, a Punk Rock lança um selo e, com ele, o primeiro disco com bandas punks brasileiras.
Marco na história do movimento, o "Grito Suburbano" reuniu Cólera, Inocentes e Olho Seco.
"A idéia original era gravar um compacto só com músicas do Olho Seco. Ouvindo as outras bandas, pensei: 'por que não juntar todo mundo e fazer um LP?"', disse Fábio.
Com 12 faixas, o disco contém verdadeiros hinos punks, como "Garotos Suburbanos", "Medo de Morrer" e "Pânico em SP", dos Inocentes.
"Pânico em SP/As sirenes tocaram/As rádios avisaram/Que era para correr/As pessoas assustadas/E mal informadas/Se puseram a fugir sem saber do que/Pânico em SP".
As letras, francas, falavam sem frescuras sobre violência, desigualdade e injustiça da sociedade contra a qual lutavam.
Eu sou o que visto
Para eles, ser punk significa mais do que compor músicas criticando o sistema: é uma opção de vida acima de tudo.
"É uma forma de eu me expressar político, sócio e culturalmente", define Zorro.
As roupas, então, são fundamentais.
Jaqueta e cinto de couro cheios de tachinhas, calça jeans rasgada, coturno e, para os mais radicais, coleira de cachorro no pescoço e alfinetes na cara. Os cabelos, moicanos e coloridos, lembram os índios norte-americanos.
"Queríamos quebrar tabus, chocar as pessoas", explicou Redson, do Cólera.
Ariel completa: "A gente queria chamar a atenção para o que estava acontecendo com a sociedade".
Se eram contra os militares, por que suas roupas eram tão influenciadas pelo exército? "Para ridicularizar os soldados", respondeu Zorro.
Não era raro o visual punk causar constrangimentos durante os passeios.
Zorro e Ariel contam que, certa vez, foram para Campinas de trem junto com uns 100 amigos.
"Quando a gente chegou à estação, o povo começou a bater palma achando que a gente era de algum circo."
Violência e mídia
Punk e violência sempre andaram juntos. As gangues não se entendiam e quase sempre a noite acabava em quebra-quebra. Houve mortes e prisões.
"Claro que existiam os punks violentos, mas as pessoas generalizaram, pensando que todos nós éramos assim", desabafou Clemente, dos Inocentes.
O país saía do regime militar e o governo não via com bons olhos aqueles "rebeldes". Confrontos com a polícia se tornaram comuns.
As tensões chegaram ao auge em "O Começo do Fim do Mundo", no Sesc Pompéia. A rivalidade entre as turmas do ABC e de São Paulo se acirraram, e o evento foi realizado com o objetivo de promover a paz entre elas. Houve briga e a polícia invadiu o local, acabando com os shows.
Segundo Ariel, a partir daí, os punks foram "perdendo espaço e voltando para os guetos".
Além das divisões internas e da pressão policial, parte da imprensa publicou reportagens ressaltando a violência e os perigos do movimento, aumentando o preconceito em relação a eles.
Descontentes com os rumos que as coisas tomavam, Clemente e João Gordo, entre outros, foram se distanciando do grupo, que os acusou de "traidores".
A onda punk ainda viveria por mais algum tempo, fazendo sucesso em casas noturnas como "Napalm" e "Madame Satã".
Mas muitas bandas se dividiram, e os shows foram acontecendo cada vez mais longe do centro da cidade. O Cólera, por exemplo, em protesto contra a violência entre as gangues, passou a tocar no interior do país.
Vida pós-morte
Não se pode dizer que o movimento punk morreu. Zorro, Ariel e Cuga, dos Invasores de Cérebros, e Redson, Pierre e Fábio, do Cólera, são provas disso.
Eles se recusam a assinar contratos com as gravadoras, já lançaram discos independentes e conservam o estilo dos punks dos anos 80 -Cuga continua a usar cabelo moicano.
Para quem os considera anacrônicos, respondem: "Só podemos criticar o sistema se não fizermos parte dele", finaliza Ariel.

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